Office in a Small City por Edward Hopper

O centro em parte alguma

Meu inconsciente vê. Meus olhos são cegos. Sou muito pequeno para acreditar em alguma coisa.
Não vejo. Não sei. E estou preso às correntes da vida, aos ciclos e ao tempo.

“Pablo não apareceu hoje. Dona Norma não lhe perguntou nada?”

“Não, senhor. Ela está preocupada?”

“Um pouco, sim, senhor Júlio. Mas ele sempre volta. E então, quer beber alguma coisa?”, mostrando-lhe a sala, de sua porta aberta.

“Não, obrigado. Preciso de um banho, meu dia foi muito corrido.”

“Deixe o banho para depois, vamos, alguns minutos não vão lhe fazer mal.”

Outra vez a sala de estantes, agora sem Bruno. Coelho foi ligar o toca-discos. Júlio girava seu copo, por vício, fazendo tilintar o gelo, também por vício percorrendo com os olhos as prateleiras apertadas de livros. Não gostava de se sentir pressionado, não estivera pensando nisso quando aceitara entrar, agora não via muitos motivos para demorar-se ali, e começava a sentir-se apático, era como se considerava numa noite assim, de um dia qualquer, em que o mais confortável seria mesmo enfiar-se num banho, soltar-se num sofá ou de uma vez em sua cama, sem ter ainda de exercitar qualquer estado de alerta.

“Beethoven. A Sinfonia n°. 7 e seu allegretto. Diga-me, senhor Júlio, não seria essa a música que o senhor levaria consigo ao espaço sideral, se pudesse escolher, como o podia, o violinista de Faldum?”

Tais citações intrigavam Júlio, seria preciso ler outros tantos livros para identificá-las todas, mas sempre era possível compreender assim mesmo.

“O senhor é divorciado?”, Júlio finalmente arriscando-se a alguma pergunta direta.

“Na verdade, senhor querido vizinho, poucos neste mundo são mais solitários do que eu. E não se trata de morar sozinho. O senhor compreende?”

Tlim, tilintlim, cubinhos girando, clopf, desmoronando discretamente uns sobre os outros. Gole no uísque gelado.

“Claro.”

“Sim, eu sei que sim. E sei também que você é diferenciado, senhor Júlio, não há como deixar de ver isso. Foi talvez o único aqui por perto que não se interessou pela tragédia de uma semana atrás, a que, por vários dias, foi a razão de viver para tanta gente fofoqueira e se fez a mina de ouro da imprensa.”

“Não que não me interessasse, mas… Acho que todos falam disso com certo medo e como se não fossem morrer nunca. Eu me interesso um pouco. Não muito.”

“Aí está”, Coelho ensaiando um sorriso. “Há sempre algo mais. Quanto a mim, senhor Júlio, sinto-me insensível à morte alheia. Quanto à minha, nem se diga. Ora, que posso fazer? É o meu natural. É o natural de tudo. Não há nada mais natural do que a morte. E todo ser vivo tem de encontrá-la um dia, quem não sabe disso?”

“Sim, mas…”, duvidando do que ele próprio pudesse dizer em seguida, com relação e como reação àquilo. “Certos momentos impressionam.”

Gelos silenciosos. Beethoven repetia, lento, a sequência de notas distantes, mas eloquentes, de seu allegretto.

“Porque somos acomodados. E carentes. Não queremos saber de verdade como funcionam as coisas. Veja, por exemplo, a velha história da miséria e da indigência: tantas pessoas por toda parte falando em donativos, contribuições, trabalhos voluntários, nenhuma delas deseja resolver o problema, acabar com a pobreza. Não. Tudo o que sempre fazem serve para conservá-la indefinidamente. Com a discreta ajuda do governo, sempre isso, em todos os mandatos.”

“Pensei que o senhor não se importasse com isso.”

“Não me importo mesmo. Apenas admiro a estupidez coletiva. É notável que nesse meio todo não aconteça alguém que atine com o que esteja fazendo. Com o que de fato esteja se passando. Bom, fazer o quê? Não se pode sair por aí dizendo isso a toda a gente.”

“Sem dúvida”, Júlio ainda sem muita convicção, apenas arrematando o diálogo.

“Depois, os religiosos de plantão tornariam àquela desgastada ladainha da solidariedade contra o egoísmo, de os ateus serem os vilões do mundo, só porque não contrapõem fantasias como as deles à falta de discernimento para justificar a realidade. Que, aliás, não parece tão complicada assim.”

“Pode ser. Talvez. Não muito.”

“Também, da mesma forma como podemos observar as coisas por um certo ângulo, um desses religiosos também estaria indignado em saber que alguém pudesse ser livre de tudo o que os atormenta.”

Coelho era acostumado ao álcool, deitava seus drinques muito rapidamente, mas não parecia sofrer seus efeitos, como se os usasse apenas como pretexto para fingir-se confuso. Júlio não identificava alterações em sua voz ou em seu rosto. Só a concatenação de ideias parecia perder-se, gradativamente, das amarras.

“Mas sempre haverá alguém para quem todos os seus propósitos não farão o menor sentido. E a quem será indiferente qualquer coisa em que você acredite. Outra coisa importante: podemos dispensar facilmente o que outras pessoas pensam sobre nós quando observamos como elas, em suas vidas, tão inquestionavelmente mais importantes do que tudo, quase nunca pensam em nós. Afinal, qual é o cérebro mais bem adaptado ao mundo? Quem nos dita isso? E o que é isso que chamamos de mundo? Dê aqui, dê aqui. Vou pegar outro.”

“Obrigado, mas… Acho que vou andando.”

“Ora, não, fique aí sentado, mais um desses só lhe poderá fazer bem. Espere, espere, já volto.”

Por mais que tentasse esquivar-se, Júlio reconhecia que, mesmo entre as ideias singulares daquele homem, conseguia vislumbrar alguns traços de verdade. Sentia como se pudesse aprender algo, ainda que por vias tortuosas, ou enriquecer-se com pequenas observações, que ele sempre as tinha. Por um motivo ou outro, não lhe era difícil permanecer por mais tempo ali. A certa altura, Coelho lhe contava de uma das rotineiras conversas com a proprietária.

“… pois eu lhe disse que não havia nenhum problema nisso, que para cada homem afastado de Deus, havia outros mil dependurados nele. Portanto, a humanidade estava salva. Não bastasse a insistência da pobre na velha crença da ascensão da Virgem, veja-se se isso é coisa em que um adulto acredite, senhor Júlio, ela o tempo todo temerosa de que eu pudesse fazer com isso alguma piada, e tinha razão, porque quase não a poupei de qualquer comentário, ora, não havendo seu corpo físico regressado à Terra (ou ela estaria entre nós), teria de estar em algum lugar do universo, digamos, num determinado planeta, não desses mais próximos, de absurdas temperaturas, umas que derretem chumbo, outras que congelam até a alma, ou até mesmo, o que também seria de se esperar… Jesus! O que só agora me ocorre: essa senhora pode estar em órbita!”

Sarcástico ou não, blasfemando gratuitamente sem que se tocasse no assunto, para Júlio ele havia perdido de alguma forma seu centro, o centro de si mesmo, se bem que não saberia ele próprio definir o que seria manter-se em seu centro, pois também duvidava dos resultados de sua própria relativa lucidez. Aquele homem o fazia ver outras coisas, porém não se fazia ver a si mesmo, algo como naquelas esferas, citadas em almanaques místicos, cuja circunferência está em toda parte; e o centro, em parte alguma. Coelho apreciava a companhia de Júlio, como também a de Bruno, mas logo os esquecia facilmente, porque não conseguia gostar de nenhuma coisa por muito tempo. Ele lhe parecia inofensivo e carente, intelectualizado e pessimista, faltando a Júlio conhecer algo mais de sua história pessoal para poder compreender como havia chegado a ser o que era agora. Ele não estava de fato ali, à sua frente. Talvez houvesse sido assim a vida toda, nunca estando realmente onde parecia estar, oscilando entre algum outro lugar e este, entre aquele lugar e esse outro, e nunca se encontrando inteiramente neste, como nunca inteiramente naquele.

“Meu inconsciente vê. Meus olhos são cegos. Sou muito pequeno para acreditar em alguma coisa. Não vejo. Não sei. E estou preso às correntes da vida, aos ciclos e ao tempo. O mundo não pode mudar, o senhor sabe. Todos se vendem por dinheiro. Todos tramam em silêncio…”

Júlio não entendia mais. Não atinava com a relação de uma coisa e outra. Sua solidão talvez o motivasse a falar muito em presença de alguém. A confusão, no entanto, era o que predominava.

“Desculpe, não estou entendendo o que o senhor…”

“Ouça isto”, olhos fechados, num gesto a que se interrompesse tudo. “Mendelssohn…”, recitando devagar, como resgatando respeitosamente as palavras. “Sinfonia italianaAllegro vivace. Ouça, ouça isso…”

Outra maneira de desvencilhar-se do que pensava e dizia até então. Júlio sentiu a pulsação acelerando-se. Era impossível conservar-se indiferente ante o que ouvia. Também ante o que via.

“Um deles compreendeu o que o primeiro propôs”, Coelho referindo-se aos instrumentos. “E já dá sinais de que o repetirá a seu modo. Está ouvindo? O primeiro se renova, mostrando com isso que os influenciará e os trará para o seu lado…”

Júlio queria crer que não os estivesse associando, a ele, a Bruno, a qualquer outro jovem, inconscientemente, tanto quanto a si mesmo, ao instrumento-mestre e aos que interagiam com ele.

“Os outros tentam convencê-lo, mas estão indecisos. Ouça com atenção. Agora é como se os congratulasse de alguma forma. Finalmente, todos querem estar de acordo. Tentam alçar voo dentro dessa mesma perspectiva. Ouça, não há palavras para isso…”

Por qualquer motivo, Júlio deixou o copo na mesinha ao lado, temendo não poder segurá-lo com firmeza. Não queria admitir que tinha lágrimas nos olhos. A música era extraordinariamente bela, além de arrebatadora. Aquele homem buscava mostrar-lhe o que não conseguia alcançar em si mesmo. Queria, como todos, encontrar seus semelhantes. Tinha fome e sede de respostas que ainda mal se delineavam a qualquer dos homens. Por isso o remetia ao absurdo círculo, que não mais podia definir-se, pois não tinha lugar em parte alguma.

“Ouça, ouça: é o momento de todos se unirem!”

Os últimos dias de agosto

  32. Herói sem rumo – sequência

30. Fronteiras de fumaça, luzes insuficientes – anterior

Guia de leitura

Imagem: Robert Richenburg. Insônia. 1959.

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