Office in a Small City por Edward Hopper

Treze não era uma fada qualquer

Dessa vez teve vergonha de perguntar se ele vivera uma noite de sexo com ela.
Mas mordia-se o lábio inferior, muito suavemente, com grande curiosidade.

Não era bem uma carta, mas um bilhete.

Foi bom ter conhecido você… E os momentos que passamos juntos… Por favor, não me procure mais… Aquele endereço que eu te dei é falso… O telefone também… Desculpe… Boa sorte em sua vida e em suas coisas.

Com grande carinho e amizade.

Treze

“Ela se impressionou mesmo com você!”, Bruno numa estupefação próxima da estupidez, estreitando-se ao seu lado logo que o ouviu terminar de ler.

“Não entendo. Ela não pode ter mudado de ideia assim”, entregando a Bruno o bilhete, como para que o conferisse, enquanto se movia a outro canto da sala. Encostou-se à parede e ficou repetindo uns movimentos de corpo inteiro, oscilando entre manter a parte superior pressionada a esse limite vertical, descolando-a e tornando a atirá-la para trás, como se pudesse castigar-se suavemente, batendo, condescendente, a si mesmo contra coisas duras e intransponíveis.

“Quantos pontinhos…”, observação de Bruno.

“São reticências. Mas por quê? Não compreendo.”

“Talvez ela goste de escrever assim, sempre.”

“Não é isso, não estou falando das reticências!”

“Ahn… Sei.”

“Se era alguma outra coisa, se tinha alguma outra coisa nisso tudo, por que ela não me disse?”

“Olha, Júlio velho…”, contemplando o bilhete ainda. “As mulheres são sempre enigmáticas. No caso dela…”

Bruno interrompeu-se, guardou-se ainda, talvez não fosse o momento de dizer algo sobre aquilo tudo. Tornava a observar as reações de Júlio disfarçadamente, com esperanças de que ele não tornasse aquilo tão mais sério do que poderia ser, em se tratando de uma garota apenas, e que não despencasse em alguma crise de adolescente frustrado, porque ele parecia atingido em seus sentimentos, havia alguma coisa diferente naquilo tudo, algo de que Júlio fora o centro por alguns dias – e Bruno o sentia à sua maneira de poucas palavras, mais agora ao ler quase assombrado o bilhete de Treze, mas que cartinha esta, cheia de pontinhos, parecia bem escrever assim, uma caligrafia miúda e caprichosa, coisa muito rara com aquelas safadas.

Júlio incomodara-se especialmente com as últimas palavras, desejando-lhe “boa sorte em sua vida e em suas coisas.”. Lembrou-se de seu obscuro diário e imaginou o diário dela, talvez muito mais extenso, devido às inúmeras reticências.

“Ela não deve ser casada ou…”, detendo-se onde estava e voltando-se a Bruno. “Era isso que você queria me dizer. Era isso. Não era?”

“Era.”

“Ela também me perguntou até que horas eu podia ficar. Imaginou que eu fosse casado, talvez. Como é possível? Não compreendo.”

“Ela não é casada, Júlio. Você não sabe de nada.”

“Ora, seu… Por que então você não… Desculpa, Bruno velho. Você bem que tentou.”

“Mas valeu a pena, se você pôde ter uma noite com ela. A Treze é um pouco magra, mas parece ser muito gostosa numa… Ah, tudo bem, me desculpa também. Esquece, que eu falo demais.”

“Pode dizer tudo agora”, Júlio suspirando e fingindo um sorriso de boca fechada, como os de Treze. “Não vou mais me encontrar com ela mesmo. Fala de uma vez.”

“Ela é amante de um político.”

“O que que é?!”

“Você disse que era pra falar de uma vez.”

“Ahn… É, eu disse.”

“Ela é amante de um político.”

“Sei, sei. E daí?”

“Não sei se um deputado ou coisa maior, dizem até que do próprio governador. Mas não tenho certeza.”

“Essa é boa”, Júlio engolindo em falso, ainda fingindo naturalidade, pessimamente.

“Você pode não acreditar. Ela não deve ter conhecimento de tudo, claro, mas o tal político é envolvido num esquema meio barra pesada.”

“Às vezes eu me pergunto como é que você fica sabendo de todas essas coisas…”

“Coisa pesada mesmo. Sabe, essas grandes quadrilhas de colarinho branco. A Treze não pode sair dessa, é possível que já esteja sabendo demais, e eles não vão perder ela de vista.”

“Ela me disse que tinha um diário”, Júlio com uma ênfase débil e como se de repente divagasse.

“Imagina!”, Bruno ligeiramente surpreso com o grau de intimidade a que ela se dera com Júlio. “Se isso for verdade, deve ser muito comprometedor. Olha, que perigo. Imagina se você…”

“Ah, para com esse drama! Nós somos gente de verdade, não de cinema. Era só um diário de adolescente.”

“Como você sabe? Ela podia ter montado um verdadeiro dossiê… Para com essa risadinha, isso é sério. E a Treze não é uma adolescente, se você quer saber.”

“Bom, não faz diferença agora. Nem fez antes.”

“De certa forma ela tem um compromisso, querendo ou não, com essa história toda, e tem que estar à disposição, entenda o que eu digo, nos lugares e momentos certos, mas claro que sempre ficam brechas para uma vida aqui fora, como você já…”

“Vida aqui fora! Que bela definição.”

“Ah, caralho, Júlio, você sabe que eu não sou bom nessas coisas, mas você entendeu, eu sei que sim. E não poderiam, ela e o tal figurão, sair a público tão facilmente. O governador viaja muito e…”

“Você disse que não tinha certeza.”

“Tudo bem, não tenho. Pode ser. Se quer saber também, o endereço que ela te deu é verdadeiro. O telefone, eu não sei, mas deve ser, já que ela confiou assim em você.”

“Não vejo isso como uma questão de confiança.”

“Sei, foi o que eu quis dizer. Quer dizer, não foi o que eu quis dizer. Olha, Júlio, agora o jeito é encarar o fato.”

“Tudo bem, não me importo. Nós é que não somos mais adolescentes, vamos deixar de sentimentalismos e coisa e tal…”

“Tudo bem também. Eu não estou nessa, você sabe.”

“Como eu te disse, eu já estava sozinho mesmo. Só não entendo por que ela levou tudo tão longe, melhor dizendo, não tão longe, mas… longe o bastante para mim.”

Bruno engoliu a saliva, não sabia se era piedade. Isso de Júlio ter mencionado não serem mais adolescentes era a própria denúncia de seu sentimentalismo com todos os matizes, a máscara do material mais transparente.

“Afinal, ela sabia que eu não tinha dinheiro, sabia o que eu era. O que você acha…”

Bruno, que sempre pusera a língua adiante da fala e a serviço de seus atrevimentos, dessa vez teve vergonha de perguntar se ele vivera uma noite de sexo com ela. Mas mordia-se o lábio inferior, muito suavemente, com grande curiosidade. Não ousava mesmo perguntar se a havia beijado, parecia-lhe evidente que sim, tanto quanto poderia garantir que não, as coisas com Júlio nunca se davam com a mesma lógica dos outros, enquanto Bruno, mesmo não sendo dado a abstrações e recriações imaginativas, não podia evitar a imagem perfeitamente verossímil em que Júlio e Treze se beijavam de alguma forma.

“… que ela quis com isso?”, Júlio continuando a frase e calando-se, com um olhar interrogativo.

“Ela se…”, Bruno quase dizendo que ela se apaixonara por ele, mas não o dizendo talvez para não piorar as coisas e não tornar mais difícil a perda, seria a palavra, uma perda, de qualquer maneira. “Ela gostou de você, Júlio velho. Você não é um cara comum. Não sei como, mas não é. Ela não está acostumada com alguém assim, como vou dizer? Verdadeiro e… Que mais?”

Bruno demorou-se a encontrar algum outro adjetivo. Demorou-se ainda. Não encontrou outro. Nem Júlio esperava ser elogiado ou classificado por ele.

“Ela gostou de você, só isso.”

Júlio mantinha-se mudo, ainda disfarçando qualquer sugestão de que estivesse abalado.

“Ainda bem que você não é muito sensível, não é? Melhor assim.”

“Bruno velho, vou ter que eliminá-lo. Queima de arquivo, entende? Você já sabe muito sobre mim.”

Os últimos dias de agosto

34. Já viu o prédio onde ela mora? – sequência

32. Herói sem rumo – anterior

Guia de leitura

Imagem: Daniel del Orfano. Juntos na chuva.

por

Publicado em

Comentários

Comentar