Office in a Small City por Edward Hopper

Depois de toda glória, é preciso voltar

… que acontecem

Meu primeiro prêmio literário. 21 anos. (Não é essa foto aí, não.) Uma lembrançazinha que… Pensando bem, nada mais do que isso, quando muito. Mexendo em meus livros (meus mesmo, com textos meus), reencontrei o modesto Dez contos sobre o trabalho, livro fininho, com apenas dez contos – como, a partir do título, bem se conclui. Meu conto tratava de um velho relojoeiro, pois é comum que autores jovens escrevam sobre velhos. Minha primeira historinha publicada em livro, minha primeira pequena glória, porque, mais tarde, houve outras glórias – todas igualmente pequenas, entenda-se. Viajei a São Paulo, fui direto ao evento, errei o ônibus urbano, cheguei atrasado, suado, despenteado e, para completar (clássico dos clichês), usando minha velha jaqueta surrada, porque estava frio. Eu pensava muito bem antes de viajar. Venho de uma família pobre, e viajar, comprar passagens, para nós, sempre significou gastar dinheiro. E não havia prêmio em dinheiro, só a publicação na coletânea. Escrever uma carta, pensei. Muito mais em conta, agradecendo e solicitando um exemplar do livro pelo correio. Mas um colega entusiasmado, o único que estava gostando dessa história toda, disse que eu deveria ir, porque deveria ir, porque deveria ir. Esses meus conterrâneos… Falando nisso, na volta, depois da coisa toda, por sorte ou por azar, encontrei na rodoviária um conhecido de minha cidade, que me contou, muito sorridente, uma porção de coisas inúteis e, em troca, não ouvia nada do que eu lhe dizia sobre meu inusitado sucesso literário, meu conto publicado em livro e coisa e tal. Lógico. Enfim, de volta à noite em questão. Local do evento, lançamento do livro. Dois homens, à porta, perguntaram se eu tinha o convite. Eu não tinha o convite. “Não? Qual é o autor que o senhor conhece?” (Ele me chamou de senhor mesmo, porque esses tipos não têm noção de idade, chamam um bobalhão de 21 anos de senhor, como se eu fosse o cara que merecesse todo respeito do mundo ou fosse mesmo tão bobalhão que não pudesse perceber a diferença no tratamento formal que dispensavam a qualquer um.) “Eu sou o autor”, falei, com um arrepio de vergonha. Eles se entreolharam. Pediram meu nome. Um deles pediu licença, entrou, voltou pouco depois, com um sorrisinho desenhado a lápis, e me levou para dentro. Havia uma plaquinha com meu nome sobre uma mesa. Havia também essa mesa, claro. A única desocupada em um semicírculo, armado assim no salão. Todos os autores estavam lá, se deliciando com vinho, salgadinhos e outras porcariazinhas, como se a literatura tivesse como meta o aplauso e o jantar comemorativo. Eu era o mais jovem ali, os outros mais jovens eram mais velhos, e o mais velho dos velhos tinha mais de 60, um escritor baiano de bigode branco que parecia meio cansado de tudo. (Dava medo pensar assim, vendo esse senhor, que depois de escrever tanto…) Fiquei lá, na minha mesa, sozinho, quieto, esperando passar o tempo, enquanto a tal festa de lançamento corria ao redor. Todos ali estavam cercados por familiares, amigos e outros interesseiros. Peguei o livro, fiquei folheando a brochurinha básica, até mais estreita do que certas edições de HQ, e vi meu nominho completo sob o título do último conto. Por fim, as biografias dos colegas escribas: todos com respeitável currículo, ao menos alguma atividade promissora, em andamento, entre jornalistas e tradutores e funcionários públicos. Mas o meu, de quatro linhas (três e meia para ser exato), atestava: “O autor de Relógios escreve há pouco mais de um ano.” (Mentira, eu escrevia desde os 12.) “Agora pretendo me aperfeiçoar e encarar meu trabalho de uma maneira técnica e profissional”, foi a coisa chata que eu mais ou menos falei, e eles publicaram assim, nas notas das últimas páginas. Então, uma luz muito forte quase me cegou: era o equipamento da TV Cultura. À minha frente sentou-se uma repórter muito simpática, com a tarefa de me entrevistar. Não estavam entrevistando todos, seria muito chato, só um ou outro, mas me procuraram, segundo eles, só porque eu era o mais jovem. (Que pena. Uma oportunidade dessas, nunca mais. No ano seguinte, fiz 22 anos.) A bela (eu disse simpática?) repórter perguntou o que eu gostava de ler e por que gostava de escrever – com palavras bem melhores do que essas, entenda-se. À primeira pergunta, sempre foi fácil responder. A resposta da segunda, não sei até hoje. E como não podia faltar uma gafe para celebrar minha noite de glória, eu disse a ela que lia os contos de Drummond. Claro que Drummond escreveu contos, eu tinha mesmo lido o tal Contos de aprendiz, livro no qual se insere aquela história sensível sobre a velha doida, mas claro, também, que Drummond não era um contista de referência, tanto que ele próprio, sabiamente, intitulara o volume sem poupar a palavra aprendiz. O caso é que a repórter, uma garota de uns 30, muito charmosa e com aquele olhar que nos atravessa, ela mesma parecia não saber disso, e sorriu: “Drummond?” – como se eu nunca houvesse lido um conto na vida e estivesse inventando qualquer coisa ali. (Depois percebi que quando me perguntavam esse tipo de coisa e eu dizia a verdade, que havia lido Faulkner, Tchekhov, Cortázar e outros desses monstros, os entrevistadores me interrompiam com alguma má vontade, como se dissessem, com um gesto no ar: “Não, não, esses não.” Na verdade, o que eles diziam era: “Mas… dos brasileiros…”, qual deles eu teria lido.) Então, vá lá, não foi das piores gafes da minha vergonhosa coleção. Para ser sincero, eu não tirava os olhos do rosto da tal repórter, do decote dela, enfim, sim, eu me apaixonei na hora, como um aluno se apaixona pela professora recém-formada. Na imaginação de um escritor, pouco tempo depois eu estaria com essa mulher magnética num hotel perdido na metrópole, me deliciando com essa paixão imprevista, vinho e pedaços de poemas ilustrando a orgia perfeita. Como depois de toda glória precisamos voltar, pouco tempo depois eu estava era no ônibus de viagem, na estrada escura, aquele conterrâneo roncando ao meu lado.

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