Office in a Small City por Edward Hopper

A primeira história mágica interrompida

Em outra fase conheci o fim da história.
Antes não o soubesse: a duração desse enigma era motivo de eu estar vivo.

A primeira vez que me lembra ter ouvido uma história deu-se, magicamente, em uma noite de chuva, e eu não estava em casa. Ao redor da cama, fazíamos um aglomerado de crianças curiosas enquanto uma mulher pegava a ler a impressionante história de Rapunzel, que lhe chegava às mãos por meio de um livreto infantil maravilhosamente ilustrado. Ia adiantada a festinha, e o aniversariante, um menino do quarteirão, participava tanto quanto nós daquele círculo de ouvintes, quase como se não fosse seu o presente. Éramos muito pequenos, e ele tinha razão: o que nasce das páginas de um universo assim não nos pertence senão a todos. Não tenho certeza de que idade eu tinha. Porém, vejo, como se neste instante, os olhos atentos de alguns que me rodeavam. Tenho dúvidas sobre o nome desse coleguinha da vizinhança, que me volta hoje com duas ou três variantes. E também ouço, quando quero, a voz dessa mulher contando o que lia: sem exageros, sem afetação, apenas serena e se fazendo entender, na exata medida para que nos encantássemos. Eu não saberia sequer voltar àquela casa, não tenho certeza de qual era – os bairros pobres têm fachadas muito parecidas. Mas não consigo esquecer o momento em que minha mãe, tanto quanto os pais de algumas outras crianças, entrou no quarto para levar-me dali, pois a chuva havia passado, e era tarde para que ainda nos demorássemos. Só em outra fase, conheci o fim da história. E antes não o soubesse, que a duração daquele enigma era outro motivo de eu estar vivo.

Fatalmente, são hoje tais recordações o que me constrange, o que me põe a lamentar algo que tenha perdido, sem tê-lo suspeitado senão quando tarde demais, o que surdamente ainda oprime e impede o seguir viagem. O que escrevo não pretende ser convertido na moeda dos que apenas negociam – isso podem fazer os escribas bem-sucedidos, como Cassiano C. Castilho, e os editores passam muito bem sem mim. Isto que relato não precisa correr mundo. Não precisa levar a público a minha imagem nem mesmo despertar qualquer curiosidade sobre minha vida pessoal – afinal de contas, imagem e vida de um homem tão comum. Mas é ainda, misteriosamente, uma das fortes razões de eu seguir apaixonado pela vida. Afinal, por mais absurda que seja nossa existência, quando encontramos uma boa história, queremos muito saber não como ela termina, mas como ela continua.

Do ponto de vista artístico, se já não se tornou esnobe esse adjetivo, sinto que mudei sob muitos aspectos. Perdi o senso das obras grandiosas, que hoje me parecem demasiado sérias. Há pessoas que se envolvem com o sublime, com o que consideram sublime. Não é mais o meu caso. Mussorgski, por exemplo: A grande porta de Kiev pode inspirar a entrada triunfante de um povo insurreto, uma fortaleza ou cidade recém-conquistada. Mas o que eu vejo é um homenzinho mirrado, alheio aos complicados motivos de tais transformações, sorriso comovido de camponês e lágrimas nos olhos por estar participando de tudo aquilo, perdido na multidão apenas, sem entender nada do que está se passando. Eu me importo com o que ninguém se importa. Meus heróis são os últimos homens. Os que ninguém quer ser.

50. Não gosto que me chamem assim – sequência

48. Onde não havia palavras – anterior

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Imagem: Bernhard Oberdieck. Ilustração para o conto A princesa perdida (1864), de George MacDonald. 1992.

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