Office in a Small City por Edward Hopper

Não era intenção, juro

… que acontecem

Sinceramente, não me lembra o motivo da pressa, isso foi há alguns anos: um aluno e duas alunas, nós quatro caminhando juntos, entre outros estudantes que se deslocavam pelos mesmos corredores, uns que deixávamos para trás, outros ainda que cruzavam conosco, em sentido contrário – estes, bem poucos, que era o fim das aulas da manhã, o fluxo quase inteiramente apontando para as saídas. Inverno, uma manhã sem sol, um daqueles dias especialmente frios, e nos trechos abertos da faculdade dava para ver nosso hálito se condensando no ar. Seguíamos mais ou menos com a mesma pressa, melhor dizendo, num certo ritmo, por isso íamos tagarelando sem que nenhum de nós perdesse a conversa, eles ao meu lado ou ligeiramente atrás, dependendo da desordem com que avançávamos, conforme superados acessos de um ou dois degraus, pequenos espaços em L, esquinas de corredores, toda escola é assim, com alguma simetria própria a nos conduzir ou a nos confundir. Glauco, sorrindo: “Aquilo que você falou sobre o casamento… Você acha mesmo?” “Não fui eu. Isso é do Woody Allen. Uma ironia, claro, mas sempre tem uma verdade nisso, você sabe.” Mariana: “Ah, profe, me desanima desse jeito. Eu ainda penso em casar, sabia?” “Ei, eu não disse que você não deve se casar, quem disse isso?”, eu ri. Mariana era a única que levava os cadernos e uma pasta escura protegendo o peito, talvez fosse mais friorenta. Jéssica: “Essas coisas que você fala…” “Que eu falo? Mas todo mundo sabe disso. E eu falo português, não polonês. Vocês entenderam muito bem o que eu falei, tenho certeza, foi ou não foi?” Com isso, todos se divertiam enquanto chegávamos às escadas, próximas à saída, descendo à rua. “Essa instituição (o casamento) não existia na Antiguidade, não como a conhecemos hoje.” Minha maleta à mão esquerda, a outra mão livre, provendo todos os gestos no ar, como bom italiano que sou. “Os casamentos das elites, das famílias reais, aristocráticas, eram todos por conveniência, muitas dessas pessoas tinham amantes oficiais, concubinas, etc. Os pobres se viravam como podiam, ninguém queria saber se um casal era casado ou não, se um homem vivia com mais de uma mulher ou vice-versa. Com a Igreja, isso se tornou obrigatório, de uma certa maneira, um casal-padrão, uma família-padrão, como era melhor para os dominadores, claro, para manter as comunidades sob seu controle, porque… Gente, não é difícil entender isso, não é? Falei em polonês?” “Não”, riu Jéssica, fora de meu campo de visão. Não era intenção falar nisso, o assunto saiu por acaso, a partir da análise de um trecho do clássico O cortiço, usado nessa aula recente. “E aquilo do dia dos namorados?”, Glauco ainda curioso. “Aquilo mesmo. No Brasil, foi inventado por um cara de São Paulo, um publicitário. Vai lá saber, vocês não têm internet? Em que mundo vocês vivem?” Glauco, talvez irônico, mas ainda feliz com a conversa: “Eu sei que você não viu isso na internet.” “Observe que ele escolheu o mês de junho porque fica entre o dia das mães e o dia dos pais, descontando as férias escolares, quando caem as vendas no comércio, uma baixa nos lucros, em geral. Sacou?” “E tem a ver com o dia do santo casamenteiro…” “Tem. Isso mesmo. Tudo muito bem planejado.” Voltei-me por um instante para as meninas. “Sacou, Jéssica? Ouviu essa? Falei polonês agora?” “Não”, ela rindo e soltando pela boca sua fumacinha branca. Chegamos à rua afinal, espaço aberto. Um vento frio daqueles. Mariana, um pouco atrás de mim: “Mesmo assim… Eu ainda penso em casar.” Solto os braços, solto o ar, minha fumacinha branca agora. Eu falo polonês mesmo.

Mais do que acontece: Depois de toda glória, é preciso voltar

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