Office in a Small City por Edward Hopper

Para se pensar em crocodilos e borboletas

As coisas da realidade mostravam-se sempre espantosas, ainda que alguém as visse todos os dias.
Era preciso distrair-se delas, o que equivalia a vê-las todos os dias, para então assombrar-se, irresistivelmente.

Água explodindo em sua cabeça, em seus ombros, o primeiro jato repentino antes que girasse de volta a torneira até adequar-se, e ao fluxo, a uma temperatura mais agradável. Passada a sensação da ducha, iniciou o tedioso processo de ensaboar-se mecanicamente, dessa vez nem tanto: olhava com estranho silêncio os braços e as mãos, a geografia das junções e vértices, a cor pálida da pele e a distribuição dos pelos. A carne, sua consistência. Por que não se desmancha? O que a mantém? Átomos pegados uns aos outros, fácil. Compondo moléculas. Fácil. Formando células que se pegam também, de tal forma que seu corpo existe como um corpo e, surpreendentemente, carregue em si o vírus do tempo, o que, por outro lado, descontando-se a má poesia com isso de vírus e graças a outro intrincado sistema de códigos, não permite, por leis naturais, que se desintegre antes da hora. A hora. Basta haver nascido, para um dia encontrá-la. Fácil. Também isso lhe parecia (e era) natural. Mas espantoso. As coisas da realidade mostravam-se sempre espantosas, ainda que alguém as visse todos os dias. Era preciso distrair-se delas, o que equivalia a vê-las todos os dias, para então assombrar-se, irresistivelmente. Fácil falar. Corpos sendo como eram, enquanto eram. Alguém tinha de ser o que era, como era, um arranjo de carne sobre ossos e cartilagens, além dos emaranhados de terminações nervosas que de toda maneira iam e vinham, entravam e saíam na amêndoa-mestra, discretamente amparada pela caixa craniana, essa forma de expressão sarcástica, a um tempo mórbida e ridícula, escarnecendo, após a certa consumação dos fósforos, dos que ainda discorriam sobre ela, ou do que ela própria escondera um dia, com um rosto e um nome à frente, mais sua tabuleta de princípios, ou feliz porque tudo se foi, ou rindo dos que perdiam tempo inventando mistérios, ou ridicularizando, o que era pior, o que aos humanos jamais houvesse ocorrido e fosse talvez um segredo tão monumental quanto patético, para sempre fora do alcance dos vivos tanto quanto dos mortos. Somos a única espécie que sabe disso. E que pode contar essa história. Se era verdade que havia um espírito, que importava a forma? Podia ser qualquer uma. Enquanto tudo o que de fato existia repousava entre grandes vácuos e vastos sistemas de estrelas, alguém tinha de ser o que era, como era. Isto, o que sou? – cabe perguntar-se. Claro, ninguém podia escolher. Nascendo borboleta ou crocodilo, tinha de aceitar a realidade e assim prosseguir pelo maior espaço de tempo possível, até que sua hora… Sua hora. Sou uma borboleta. Sou um crocodilo. Sou um homem. Esta, a parte mais incômoda. A borboleta e o crocodilo não precisam aceitar nada, apenas são como são e lutam, instintivamente, para afastar sua hora. O homem: mas eu, eu preciso saber do que sou. O mesmo instinto, é preciso admitir. Mais sutil (usa-se dizer desenvolvido, evoluído) em uns do que em outros, melhor dizendo, engendrando necessidades diferentes entre o crocodilo, o homem, a borboleta, pois todos estavam de acordo quando se tratava de afastar a Hora. Também é preciso admitir, desde os últimos milhares de anos, uma fase de amadurecimento intelectual da espécie. Alguém, observando mãos, vértices, pele e pelos, buscava involuntariamente compreender o sentido de sua breve existência. Júlio, mas que canastrão vem se tornando! Ao menos, pense por outras palavras. Tome logo seu banho e esfregue bem atrás das orelhas. Se fosse possível lavar seu cérebro… Crocodilos tomam banhos todos os dias. A chuva pode matar uma borboleta. Você, um animal superior, seja um bom menino e vá em frente.

Quem sabe você também se renda à decantada maravilhosa máquina, quem sabe admire, ainda, não apenas o prolongamento dos braços, mas a sutileza dos movimentos, isso sem falar nos aparelhos respiratório e digestório, tudo rimando com laboratório, por onde se absorvem e se reciclam elementos, energia alheia que passa por nós, com isso permitindo-nos participar da vida – claro, se continuarmos matando e comendo. Para chegar até aqui, você usou seu corpo para transportar-se. Então, diga-me, o que é você? Seu corpo? Mas, observe, é tudo uma questão de palavras, não pode ser muito difícil. Nem muito importante.

O que sou, pensa Júlio tentando livrar-se da espuma que lhe arde nos olhos, está aqui em cima e aqui dentro. Quando me desloco, o que essencialmente transporto é minha cabeça, que é onde se encontra meu pensamento, portanto o que sou.

Que didático. Talvez eu devesse lecionar. Prosseguindo.

O cérebro talvez seja um mistério maior do que os mistérios que consideramos através dele. Pensar no próprio cérebro parece mais contraditório: é como se transgredíssemos alguma lei natural que o resto dos seres vivos ainda nem conhece. Há algum tempo nos voltamos a nós mesmos, já nos convencemos de que somos uma síntese, agora ao espelho, com isso adquirindo certa importância, claro, dentro de nossos critérios do que seja importante. Ainda assim, nós nos reproduzimos, em nome da preservação de nossas características. Minha atração por mulheres será só isso? Se não é, também não é mais nada. Aqui dentro, meu filho que não existe. Dentro dele, incontáveis ramificações de descendentes. O homem futuro, em estado de esperma. Homens futuros, quem diria, guardados sob outra forma, na escuridão. Aqui. Comigo.

Então um arrepio, percorrendo-lhe a espinha, desencadeou uma impressão nova e intrigante: alguma coisa se acumulava e se debatia internamente, fazendo-o suspeitar de algum sintoma de depressão ou angústia, algo talvez mais específico ou mais abrangente, o que não podia levar em conta no momento, pois sentiu que se apoiava na parede de azulejos para resistir à vertigem que o fluxo de água em nada parecia atenuar. Recuperado, entendia que alguma coisa não estava certa – mas o quê? Que alguma coisa começava ali. Que algo tentava manifestar-se através dele, sendo ele mesmo, o que era mais inquietante. Era apenas um banho. Segunda-feira.

“Anda logo com isso, sua puta!”, Bruno esmurrando a porta.

Um banho. Acha que estou me masturbando, sei. Nem sempre você está de todo errado, Bruno velho. Mas não hoje. Sinto que esta água me batiza e me destina desde agora à aventura de meu próprio medo. Acha que estou me masturbando, mas não hoje. Hoje não.

 Os últimos dias de agosto

39. Por vezes, como uma canção de ninar – sequência

37. Por quem o luto imprevisto? – anterior

Guia de leitura

Imagem: Piet Mondrian. Composição 2 em vermelho, azul e amarelo (detalhe inferior). 1930.

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