Office in a Small City por Edward Hopper

Um relógio, por exemplo

O tempo é a oxidação da realidade, o sol causticante ou a umidade nociva que contribui para a lenta dissolução das coisas.

Se reencontro um objeto que me serviu na infância, entendo que é o único resquício, tudo que restou do que não há mais. Esse mesmo objeto toma forma em minhas mãos apenas no presente, pois também ele não existe no passado. O tempo é a oxidação da realidade, o sol causticante ou a umidade nociva que contribui para a lenta dissolução das coisas. Quando imaginamos o passado, por meio de livros e ilustrações, penetramos um mundo silencioso, cinzento-âmbar, que no fundo nos incomoda exatamente porque não mais nos atinge. E nos causa medo justamente porque não nos pode mais ameaçar, sendo hoje o invisível, o intangível. E inominável. Mas os arquétipos… As palavras…

“Eu ia para o catecismo naquela época e sempre pela mesma rua, eu sempre olhava a esquina do barbeiro naquela época, era um prédio antigo, um salãozinho de esquina, um prédio velho mesmo, esses de forro de madeira daquela época, alto, e uma lâmpada num fio comprido, dessas que a gente acende pelo soquete, não sei por que aquela esquina do barbeiro sempre me fazia olhar pra ela, aquele prédio antigo, depois eu ia pro catecismo e voltava, e tudo sempre ali, no mesmo lugar, mesmo assim eu olhava o salãozinho do barbeiro quando passava pela esquina e não sei…”

“O que tem o barbeiro com o catecismo?”, Júlio entre a fumaça de outro cigarro indolente.

“O que tem?! Como, o que tem? Não sei. Nada. Sei lá! Só estou contando, caralho!”

Era preciso levar em conta que Bruno não era o autor de um dos livros que Júlio mastigava, nos quais tudo tinha uma determinada função, e qualquer redundância e sintoma de digressão eram implacavelmente condenados pelas exigências estéticas. Bruno não se importava absolutamente com a coerência, com a concisão, com a simetria ou com qualquer outra bobagem imposta pela intelectualidade, mais condicionada, menos livre do que ele. Também não se importava que Deus fosse apenas mais uma metáfora, a imagem do tal vertebrado gasoso, de temperamento nada agradável, pois no fundo ele sabia, sem usar palavras, que toda filosofia era um compêndio de explicações inacessíveis para questões sem resposta.

“Gostei. Conta mais. Como era o padre?”

De qualquer forma, se assim conviesse, era possível associar a esquina do barbeiro, imune à transformação, ao ensinamento religioso, o que demonstrava que tudo era possível dizer, distorcer, disfarçar ou destruir, tanto quanto possível afirmar, munido de argumentos convincentes, que Shakespeare não passava de um idiota afetado, enquanto o mais repetitivo de nossos articulistas encarnava, sim, a consciência de seu tempo.

Os últimos dias de agosto

42. Girassol do mal – sequência

40. Pateta – anterior

Guia de leitura

Imagem: Liu Mao Shan. Paisagem urbana 2.

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