Office in a Small City por Edward Hopper

Um e outro, dois lados da coisa

 Nem parecia a mesma da noite passada, a que lhe respondia movimentos ansiosos, transpirando impaciência.

A placidez do sono, o casal lascivo. A inocência da morte.

Os sintomas opressivos da crise iminente haviam implantado nele a impressão definitiva de ser, além de um homem, uma circunstância, uma peça provisória e frágil. Uma aparência insólita, efêmera. Uma mentira. Agente derivado e continuador de uma realidade abrangente que até então não conhecia tão imperativa. Uma circunstância, pensou. Só me faltava essa. Uma mentira. Quisera em seu diário ter registrado essa noite singular, impregnada de substâncias, especialmente o que provinha de sua fêmea avulsa e dessa relação, pudesse descrever sua consistência de carne e glândulas com palavras que se pudessem apalpar, variações na extensão da pele em tons que se permitissem de fato ver, aromas que se desprendessem do papel em que são lembrados, amostras de suor que inalasse também quem absorvesse cada forma gráfica, sua sugestão de movimento, transpiração e êxtase.

Pela manhã, uma dor tênue mas insistente latejava-lhe nas têmporas. O dia nublado era bastante para clarear as paredes do quarto que ele não reconhecia. Onde era ali? Onde se está quando se está em certo lugar? Onde o quarto da infância ou da morte, outros tantos que se perdem entre estes no avulso transcorrer, lento mas vertiginoso, das fases?

Virou-se na cama, um susto: a garota morta ao seu lado. Nua, de bruços. Claro. A noite anterior, o motel. Sentou-se com a sensação de estar distante, ficou olhando aquela nudez, sem nenhum entusiasmo. Nem parecia a mesma da noite passada, a que lhe respondia movimentos ansiosos, transpirando impaciência. A placidez do sono, o casal lascivo. A inocência da morte. Andou pelo quarto sem saber o que realmente queria. O fato de estar ali, ao lado de uma mulher que mal conhecia, o incomodava talvez mais do que a enxaqueca que se intensificava aos poucos. Uma espécie de ansiedade nervosa desafiava-lhe o autocontrole, por pouco não o fazendo irromper em soluços. Voltou-se a tempo. Foi até a garota morta. Decidiu acordá-la.

“Hum… Já acordou, meu amor?”

“Não sou o seu amor. Anda, preciso ir embora.”

Ela não ouviu. Rolou sobre si mesma, assimilando outra aconchegante posição.

“Levanta… Ei!”

“Hum… Por que a pressa, cara?”

“Tenho que ir.”

“E o café da manhã? Tá incluído na conta, sabia?”

“Não quero café. Detesto café.”

“Então vem cá comigo, vem.”

Convidava-o com um gesto sonolento, olhos fechados. Júlio percebeu que não se lembrava do nome dela.

“Olha… Toma sua roupa.”

Ela sentou-se na cama, desconsolada. Parecia ter cola nos olhos.

“Sério mesmo, amor?”

Entregou-lhe o sutiã, que apanhou do chão.

“Eu preciso ir. Toma. Isso deve ser seu.”

Enquanto ele se vestia, ela resvalou para fora da cama. Ficou admirando o próprio corpo, no espelho da parede. Torcia a cintura, virava-se devagar. Não parecia tão baixa na noite anterior. Camisa, sapatos: Júlio estava pronto. Ela espremia uma espinha, cuidadosamente e sem pressa, tombando a cabeça um pouco de lado. Júlio ficou irritado com isso, mas sentiu que não havia razão para ser rude com ela. Vamos, Júlio. Você e ela são os mesmos. Um e outro, dois lados da coisa. Da mesma coisa, lembre-se.

“Me ajuda aqui com o zíper, meu bem.”

Ajudar meu bem. Já acordou, meu amor? Dois lados, lembre-se. Você, Júlio, um lado distinto. Um lado sinistro de tudo.

Os últimos dias de agosto

44. Atrás de seu século, não existe nada – sequência

42. Girassol do mal – anterior

Guia de leitura

Imagem: Ernest Joseph Laurent. Mulher nua. 1915.

por

Publicado em

Comentários

Comentar