Office in a Small City por Edward Hopper

Atrás de seu século, não existe nada

Pressentia seu aspecto ruinoso, historiado talvez por lembranças cinzentas e esmagadoras.
Parecia louco. E nunca o vira tão lúcido. Não as palavras. O olhar.

Claro que me lembro. Tenho certeza. Foi a primeira vez que me defrontei com o que mais tarde chamaria minha loucura. Mas, entenda, não é uma crise avulsa, um mal-estar de fígado. Não um ponto de insanidade confusa, mas de estonteante lucidez.

Por esses dias, aconteceu algo que haveria de impressioná-lo muito. Voltava pelo fim da tarde, após um dia especialmente exaustivo, já subia os últimos degraus da escada, quando avistou a porta de Coelho entreaberta, o que não era comum. Retardou os passos e viu que ele remexia a estante de livros ruidosamente, o que também atraía a curiosidade de qualquer um que passasse, mas não que se justificasse com isso. Júlio aproximou-se, foi visto.

“Ah, entre, senhor Júlio. Entre, se quiser.”

Coelho procurava algo, por um momento, ansiosamente. O quê? Ainda junto à estante, pegou um livro, fez cair outros, quase em sequência, e nada disso parecia alcançá-lo.

“Entre o berço e o sepulcro…”, repetindo como o título de algum livro, dos que ele próprio denominava intoleráveis. “Entre o berço e o sepulcro… Entre o… E nada se vê…”

Júlio entendeu que ele estivesse bêbado. Não tinha certeza. Pressentia seu aspecto ruinoso, historiado talvez por lembranças cinzentas e esmagadoras. Mesmo assim, ocorreu-lhe retirar-se dali o quanto antes, para não ter de ouvir os conhecidos remoinhos dialéticos dele. Porém, deparando num instante com seu rosto, percebeu que algo não estava certo. Não só isso. Havia uma estranha situação tecendo-se ao redor, sendo Coelho seu centro, Júlio talvez sua órbita.

“O senhor perdeu alguma coisa?”

“É tudo uma combinação de palavras, mas não se incomode com isso. O fato é que somos os mesmos sempre. E nada nunca muda. Os mesmos. E nada se vê. O fato é que… O fato…”

Júlio não podia deixar de senti-lo uma figura trágica, com potencialidade a grandes realizações, e justamente impedido pelo que seria uma realização acima das realizações, o inconcebível encontro com a resposta e a unidade, talvez as palavras que as enunciassem como uma fórmula. Não o impressionava uma ou outra ruga, o aspecto natural de sua idade, pois algo que não era o tempo nem o passar-se a vida, algo fatigante e inominável era o que quase o fazia outro. Parecia louco. E nunca o vira tão lúcido. Não as palavras. O olhar.

“Posso ajudar em alg…”

“O problema de sobreviver é carregar os mortos. Eis o fato. Os animais são livres disso. Eis o fato. Os animais silvestres, principalmente… Ah, os animais silvestres…”

“Que mortos, seu Coelho?”, Júlio esforçando-se por parecer solidário ou, no mínimo, menos impaciente.

“Meus inimigos, alguns morreram tão mais facilmente do que eu esperava. Outros, sem que eu o desejasse. Eu, que sempre almejei sobreviver a meus inimigos. O grande lutador. O sobrevivente!”

Júlio tinha esperanças de que ele não se tornasse de súbito um canastrão embriagado, como nos filmes ou nas telenovelas, em que tal situação se revelava com notável regularidade a cada quinze dias. Isso o decepcionaria amargamente.

“Mas isso agora…”, Júlio com vaga lentidão.

“Os vivos fedem mais do que os mortos. O irlandês sabia muito bem.”

“O irlandês? Ah, sim…”, sem ânimo algum.

Coelho repassava resquícios de sua história pessoal, que Júlio mal podia compreender ou associar ao que ele resmungava entre uma afirmação e outra, como quando dissera avulsamente e sem que se houvesse mencionado seu irmão: “Toca o telefone, veja o senhor, que bobagem, às vezes penso que é ele. Quase me esqueço de que morreu há mais de vinte anos. Sempre os mesmos. E nada se vê…”.

Júlio recordou num relâmpago o que vira certa vez no quarto de estudos de um amigo em sua cidade. O amigo separa da estante um volume ilustrado, na capa a nitidez de uma paisagem submarina, verde-azul-atlântico entre focos de luz solar, folheia algumas páginas até encontrar o que pretende, mostra a Júlio desenhos e fotos de fósseis que procuram comparar a estrutura óssea de alguns espécimes pré-históricos com seus descendentes remotos. O esqueleto mal proporcionado de um felino de milhões de anos torna mais elegante o tigre atual, por exemplo. A gravura que mostra um pterodáctilo de asas membranosas de longe faz lembrar o voo harmonioso da gaivota como hoje o conhecemos, a série de ilustrações confirmando o processo evolutivo dos seres vivos, assemelhando-se, relacionando-se entre si por repetirem obstinada e misteriosamente uma mesma ideia, realizando-se em função da delicadeza e da proporção das formas, da harmonia e do equilíbrio das feições. O relâmpago trazia-lhe o plastificado fundo do mar, os desenhos em sépia, a voz do amigo chegando-lhe: “Esses milhões de anos não existem agora. É impressionante que tudo tenha se passado tão rápido.”. Agora: em que proporção se vinculavam tais faíscas ao pterodáctilo presente, o fóssil-ser-vivo de sorriso assimétrico e careta pouco harmoniosa? Havia Havia nesse seu vizinho, o talentoso e singular senhor Coelho, algo que Júlio não alcançava discernir, mas que o punha, a esse homem perdidamente questionador, atrofiado ou membranoso, de alguma forma impróprio ao voo.

“Quando eu era jovem e vivia internado em Dostoiévski, Poe e…”, uma risada pela metade. “Arte, como o senhor já sabe, é coisa de doentes. Vingança de egos inibidos ou extrapolados. Sempre os mesmos…”

“Talvez nem sempre”, Júlio mais por uma necessidade de interrompê-lo do que certo de lhe estar trazendo alguma coisa, por isso mesmo pouco atraindo a atenção dele, ligeiramente irritado, no fundo por não lhe vir com clareza o que dizer, o que desejava dizer. “As coisas se transformam com o passar do tempo e… Nem sempre as coisas…”, também por não acreditar em si mesmo.

“Um de meus sonhos de infância, senhor Júlio, era ser inventor. Agora diga-me: de que me serviria ter inventado qualquer coisa?”

“Eu ia lhe dizer…”

“Já reparou que o que sonhamos…”

“O senhor quer me ouvir?”, Júlio em melhor ênfase.

De Coelho, o sorriso quase de piedade, no fundo outro resquício do sarcasmo, um gesto solto no ar.

“Alguns insetos que…”

“Sim?”, cinismo devastador.

“Alguns insetos, que em outras épocas viviam sem nenhum método, vêm se organizando em grupos com o passar do tempo. As abelhas e as formigas formaram suas sociedades há pouco mais de…”

“Cento e quatro milhões, seiscentos e dois mil anos e cinco semanas, sei.”

“Sim, em torno de cem milhões de anos, um tanto mais. Sabe o que isso significa?”

“Que eles eram felizes antes.”

“Isso mostra apenas que a evolução trabalha. A natureza aponta um caminho. Antes, não havia tais sociedades, hoje há hierarquias, e quem sabe o que virá depois?”

“Hierarquias? Não brinque assim comigo.”

“Não é bem isso o que quero dizer. Alguma coisa mudou, é preciso reconhecer isso. Hoje, como o senhor diz, talvez nada se veja. Mas quem sabe o que virá depois…?”

“Depois? Depois do quê? O que virá?”

“Nas formigas, por exemplo”, Júlio reconhecendo-se inseguro e impotente, uma coisa pela outra, impotente porque inseguro, e sua contrapartida, empurrando-se à força, “há em cada indivíduo um admirável senso de responsabilidade e dedicação em favor da espécie. Como se algo lhes dissesse que devem continuar, continuar, permanecer e evoluir, alcançar sempre mais um verdadeiro sentido para sua…”

“Evoluir não significa encontrar um sentido”, Coelho desviando-se em seguida, desinteressado. “Nada se vê, eis o fato. Palavras repetidas por todos os idiomas. E nada… E ninguém…”

“Nada se vê agora. Talvez mais tarde. Quem sabe? Continuar não é só uma palavra. Faz parte de nós.”

“Parte de nós, sei. Você vai me dizer: quem sabe o que seria melhor para esses que escrevem? Do que eles precisam? Pense no rol de desgraças que agora mesmo estão disseminando com cada livro que põem no mundo, lembrando-nos angústias e precipitando suicídios, quando talvez nos fosse indiferente e a eles próprios que soubéssemos ou não, que voltassem a seus afazeres sem que os conhecêssemos, que fizessem outra coisa qualquer de suas vidas…”

“A vida não é só o que se vê, seu Coelho…”

“Ah, não?”

“A vida tem algo, em si mesma, que não pode ser contido e quer transbordar de seu invólucro, claro que o senhor sabe disso. E assim, uns escrevem versos, outros pintam, dançam, encenam, criam música para ouvirmos a nós mesmos por dentro…”

Coelho parecia preparar-lhe outro sorriso aniquilador, mas talvez por amizade ou apenas por não lhe agradar tal covardia, trocou outro olhar invulnerável por dois passos quase interrompidos, em direção ao visitante, o tropeção controlado a tempo. O dedo ao peito de Júlio, como se desenhasse sobre a sua camisa.

“Diga-me, senhor Júlio… Diga-me. Quer falar mais? Eu posso ouvi-lo. A noite toda, se for preciso. Pode vir todos os dias que quiser. Todas as noites. Depois que tudo passar, será como se nada houvesse acontecido. E não falo de minha vida, de meu tempo…”

“O senhor bebeu um pouco. Leu isso em algum lugar, eu sei.”

“Que importa? Uns escrevem, outros leem. São os mesmos, todos. Sempre os mesmos. E ainda manipulam perguntas do tipo para-onde-vamos. Ora, como vou saber para onde vamos? Sei onde estamos. E é sempre onde estamos.”

“Mas… O futuro não…”

“No futuro, outros serão como somos. E também não irão a lugar algum, apenas estarão onde estarão, aqui mesmo talvez. Você já se perguntou, diga-me, já imaginou mesmo, digo… Nunca teve esse medo? De que tudo o que você pensa, tudo em que acredita pode estar errado?”

“Seu Coelho, há muitas palavras e a maneira de usá-las. Ao menos isso eu conheço um pouco. Pensei em ajudar, apenas…”

“Quer que eu lhe agradeça? Isso é fácil. Sua ajuda também será esquecida, como tudo.”

“Não esquecemos tudo, seu Coelho. Tudo o que fizemos no passado existe em nós. Há registros…”

“Ruínas.”

“Ruínas, vá lá. E memória.”

“Nossos ancestrais não existem.”

“É claro que existem. Existiram.”

“Não, não existem. Não existe vida no passado. Que importam o seu sobrenome, a sua ascendência? Somos descendentes dos descendentes dos descendentes de infinitos outros, que se perderam. O mundo foi criado há algumas décadas, senhor Júlio. Entre os que existem.”

“Absurdo.”

“Ninguém viu como se formou o planeta, mas todos sabem com toda certeza como isso se deu. Por quê? Cada um inventou seu planeta. Cada qual vê as coisas como deseja, porque todos sabem, no fundo, que não podem ver. Compreende?”

A impressão de decadência, apesar de seu aspecto físico, vinha-lhe de dentro para fora, forjando um ar pesado e negligente com que o tempo parecia tê-lo marcado. Júlio não conseguia vê-lo de outra maneira: queria crer que não fosse um preconceito, uma tendência ao estereótipo, apenas uma impressão temporária que, no momento, não se desfazia.

“Não, não sei se compreendo. Não podemos ver tudo. Mas nós todos nos guiamos, através do tempo, a um destino maior.”

“Quem disse isso? Eu? Você? Espero que não.”

“Não, não acho que isso possa…”

“E acha que eu estou bêbado… O ancestral mais velho pode ter uns cem anos hoje, um pouco mais, não mais do que isso. Atrás de seu século, não existe nada. Nada. Livros e ruínas pouco me importam. A memória, você diz. Sim, a memória…”, rindo outra vez e tossindo.

A memória, você diz. Somos a soma. Um elo de inconscientes e conscientes, a noção do fluxo, vem de algum lugar, vai a outro, a fonte inconcebível que abarca tudo o que já transcorreu e do fundo da qual um gérmen se realiza em meus atos, a sombra que me move aos dias, o que me tenta a agir e a perguntar-me sem qualquer luz: de que memórias vem minha vontade? Coelho, que falava em ancestrais, ele que era o último de sua estirpe, o broto cauterizado, pronto a quebrar a corrente, não atinava (ou não desejava atinar) com essa perspectiva. Via-se enclausurado numa busca incomunicável, um animal pensante em si mesmo, o que dificultava seu… Outra escalada ociosa. Não estou aqui para analisá-lo. Nem acho que deva tentar explicar isso a todos os curiosos que me encontrem. Os demais não demandam explicações.

Coelho parecia outra vez alienado. Voltava-se a uma coisa e outra, detinha-se como subitamente retido por alguma ideia, tornava a espantá-la com um gesto. Júlio pensou que logo sairia dali, de volta ao seu apartamento, de volta aos seus dias, tornaria a outro lugar no dia seguinte, de volta à cidade e ao futuro, a outros lugares possíveis, à sua maneira de voltar a casa e à ordem, enquanto aquele outro homem já não podia voltar. Não queria despedir-se dele. Já estava à porta, quando o ouviu dizendo quase a si mesmo:

“Meu irmão telefonou hoje. Esta noite terei pesadelos com ladrões.”

Os últimos dias de agosto

45. Tudo porque eram as páginas de um homem – sequência

43. Um e outro, dois lados da coisa – anterior

Guia de leitura

Imagem: John Singer Sargent. Rua em Venice. 1882.

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