Office in a Small City por Edward Hopper

Tudo porque eram as páginas de um homem

Era apenas um homem. Mas era algo. Acreditava que o diário valesse por si só.
Acreditava-se o que podia pensar, o que podia supor.

Há algo de muito estranho em estar vivo. Haver vida. Tão desnecessário quanto não. Que mais você quer? Claro, nada a perder. A aventura está lançada, como qualquer moeda. E a aventura é apenas ser. O registro? Bem lembrado. E as crises de tantos, sobre as quais não se redigirá nenhum relato? Mas não que isso seja indispensável, como também não importa que Júlio tenha existido, a menos que se encontre não sua pessoa e sim sua memória, que depois da morte a lembrança e o esquecimento são feitos do mesmo aço, ainda que fundido e amalgamado nas milhões de vozes entre um dia e outro, entre um ano e outro, década e outra, outra vez o tempo, eis o que nos esmaga verdadeiramente. E nos faz desabar cada um sobre si mesmo.

Quando o sumo sacerdote Caifás perguntou a Jesus se era ele realmente o filho de Deus, foi surpreendido pela seguinte resposta: “Tu o disseste.”. Traduções. Verbo no pretérito, segunda do singular, quem dera imaginar a fala em aramaico, descontando-se os acréscimos e subtrações que exigem as lendas, o que também não vinha ao caso, pensava, não era o caso, naturalmente. Apesar disso, milhões de pessoas cultivavam a estranha ideia, contrariando as palavras do Cristo, de que esse antigo idealista (supondo que tenha sido de fato uma pessoa, não uma lenda), vagando pela remota região da Galileia, possa ter sido gerado por um óvulo e um foco de luz. Um átomo de nuvem. Um sopro de sol ou de lua, quem sabe alguma noção poética ainda mais fantástica. Via-se ainda que os cristãos não atentavam a tudo que seu herói sutilmente revelava, e aquela era uma passagem que curiosamente remanescia nas Escrituras sem que alguém tivesse tido o cuidado de eliminá-la ou transformá-la posteriormente, como tão habilmente haviam feito com outras. Pena que fossem relatos tão distantes. Idiomas extintos, ou quase. Quem poderia dizer o que ainda faltava? E o que era verdade?

Por trás das cidades edificadas, há sempre algo a ser conquistado. Lembrava-se de haver escrito isso entre as frases e fases de seu diário íntimo. Mas não recordava a que altura. Em que contexto. Não lhe ocorria um sentido secundário àquela frase, que retornava entre sorrateira e súbita. Em outros trechos, confessava passagens irrisórias ou digressivas nas quais suspeitava algum valor microcósmico, para evitar-se dizer microscópico, velado a ele próprio, e friamente as considerava com desprezo (e as guardava), embora, com a mínima variação de temperatura, o sentido das coisas se perturbasse. Tudo porque eram as páginas de um homem. Sua relação com o tempo e as pessoas que testemunharam parte da vida uma vez à frente de seus olhos sedentos, não mais nesse dia. Era apenas um homem. Mas era algo. Acreditava que o diário valesse por si só. Acreditava-se o que podia pensar, o que podia supor. Assim como os genes conservavam-se por meio das espécies vivas e sobrepondo-se umas às outras as gerações, acreditava também (em quanta coisa acreditava, o príncipe!) que a consciência necessitava de um portador. Enquanto atravessava o viaduto desproporcionalmente alto, pensava na distância de tempo que separava os homens, a mesma que estranhamente os unia. Também imaginou que fosse um rio ao longo de seus olhos, em lugar da via asfaltada, pensou tolamente que não se lembrava ao certo de que lado estava, repetia-se como para desafiar-se: “Estranho. Sempre pensei que essas águas corressem em sentido contrário.”. De cima, detido à grade, avaliava a vasta avenida aberta à visão de quem ousasse considerá-la. Sim, bastante alto. Um gesto. Um instante. Um salto. E tudo consumado. A morte tantas vezes lhe parecera mais simples e mais atraente, o deserto preferível à multiplicidade de formas que enfatizavam a realidade, cheia de memórias e falsos futuros. Era aquele o deserto? O nazareno ancestral estivera igualmente tentado a desistir do mundo, no topo de um monte entre os quarenta dias, nutrindo-se de abismos, perguntando-se: “Por que não me atiro?”. Demônios, outro artifício poético. Que em nada suavizava ou esclarecia essa luta contra si mesmo, contra o que o atraía e o desafiava para além dos homens, entre as grandes solidões que o faziam, de certa forma, mais livre. Resistindo, tornar-se-ia mais tarde um estranho conquistador de si mesmo, ilusão logo subestimada entre os acontecimentos seguintes. A garota, precisamente ali. Não resistira ao salto, ao encontro. Ao doce impacto da morte. Bruno lhe falara sobre ela. Quinze anos, era? Uma menina. Um instante, o gesto. E ali estava tudo. O instante. Caindo ao passado como todos os instantes, como cada dia qualquer, em cada calendário e relógio de pulso, em cada pulso. O que eram, afinal, os acontecimentos? Pegadas, pistas? Coelho lembrando-lhe de que tudo não passava de uma combinação de palavras – e outras ideias aniquiladoras. Manchas de sangue marcando os dias, depois desaparecendo de vez? Algo poderia ser evitado, o que já era o grande ontem com tudo o que abarcava, o que se registrava enfim como verdadeiro? Sobretudo, como compreender o que não havia acontecido?

As civilizações, com suas guerras, pareciam longínquas nos livros, embora muito recentes em relação ao surgimento da vida. Outra tolice. Uma infinita trama de situações individuais reciclando amor e ódio, a coragem e o medo, o triunfo e o fracasso, outras antíteses e palavras fáceis, próprias dos que sonham resumir o que não alcançam, tudo alternadamente e, com o tempo, igualando-se no vazio, ou nem tanto. Restavam registros e ruínas. Os homens presos ao hoje debruçavam-se sobre seus extintos semelhantes e seus feitos como do alto do viaduto era possível assistir às vibrações da cidade, o que no futuro seria também classificado com grandes palavras, enquanto um historiador arquivasse, suspirando de indiferença ou cansaço, as metrópoles e seus séculos.

Mas!: os espiritualistas garantiam-lhe que toda criatura viva era dotada de alma, ou corpo sutil, ou outro nome em hindi que se desse, portanto transcendente à morte e aos viadutos, portanto imortal, portanto eterna. (Até um verme? Até um vírus?) Os materialistas, que de antemão não podiam propor nenhuma ideia melhor, queriam convencer a todos de que o que somos cabe entre os impulsos elétricos de uma massa encefálica destinada a dissolver-se após a morte. Seria preciso uma terceira alternativa, ruminava Júlio sem muito entusiasmo, já que todos se julgavam certos e tanto os místicos quanto os práticos nunca encontraram com clareza algo que nos servisse a todos, algo que não seja parecido com o que pregam uns e outros, talvez bastando manter a porta entreaberta sem se preocupar muito com o futuro, entenda-se por desaparição ou eternidade. Quando Jung perguntava: “Por que esta insuperável barreira entre os mortos e os vivos?”, pressupunha um mundo dos mortos, um além, qualquer continuidade da vida após a morte, no que tantos creem tão facilmente, só porque coincide com seu instinto básico de preservação e sobrevivência. Jung era um de nós, um humano. Tinha opiniões. Podia estar errado. Como eu.

Sentia, aliás, que sua pretensa loucura o aproximava do limiar do decifra-me-ou-devoro-te, a esfinge atávica no fundo ameaçando-o justamente com a descoberta, a decifração consciente, enquanto ele carregava na memória o passado, desde a vizinhança de meninos hostis à sua estranha sensibilidade até os dias entre adultos na capital, e prosseguia alicerçado em reações irônico-agressivas, erguendo, conforme lhe convinha, catedrais profanas e cultivando fungos.

Um veículo cruzava na via perpendicular, outro seguia paralelamente em outro sentido. Que outro sentido? Seria possível ver alguma ordem nas coisas todas? Conta-se que Descartes precisou de uma mosca no teto para idealizar seu plano, nada mais que um mapa de navegação, paralelos e meridianos aperfeiçoados. Júlio resguardava-se das equações, preferia outros recursos. Sentia-se, paradoxalmente, senhor de um ego poderoso, capaz de abranger o mundo em sua visão, e isso, que lhe parecia um raro privilégio, passava a ser justamente o seu mal.

A lente tornava a fechar-se com espantosa velocidade. E ali estava outra vez o cidadão sobre o viaduto, sobre aquela cidade e aquele século. No vértice, o relógio de pulso; no fundo, o instante. O dia ou o gesto que calaria por fim a mente de seu portador, no momento verificando estar atrasado. Atrasado, como sempre. Era preciso voltar.

Os últimos dias de agosto

46. Assim são as festas – sequência

44. Atrás de seu século, não existe nada – anterior

Guia de leitura

Imagem: Franz Kline. Turin. 1960.

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