Office in a Small City por Edward Hopper

Muito, muito desconfiados

“Quem irá controlar os mercados, as fusões, as evasões de capital, os destinos dos que trabalham? Quem será que vai nos esmagar?”
Todos desconfiavam de minha sanidade mental.

No mais, levando-se em conta as graves crises sucessivas que atravessam a nação, naturalmente meus colegas vivem tentando explicar por que vai tudo sempre tão mal, contando o país com uma economia tão próspera, enquadrado entre os mais ricos do mundo, e nunca conseguem, é claro, embora lhes pareça mais importante deter a palavra final do que propriamente atinar com as verdadeiras respostas. E os que controlam a situação não serão tolos o bastante para nos contar do que fazem, obviamente. Em vez disso, o que nos vem implícito, por todos os meios, é que não há como sair dessa: que é preciso, sim, trabalhar, trabalhar e trabalhar, quem não quiser perecer. Entre os mais cultos, os teóricos e os técnicos acabam concluindo, em última hipótese, que tudo se deve ao velho espírito humano, gerador de todos os conflitos. Mas as explicações duram certo tempo, até que se apliquem novos golpes, pois o importante é não deixar decair a esperança, que é o combustível do progresso, leia-se da ilusão do progresso, que é também o veneno da continuidade, como se não pudéssemos continuar sem as estonteantes distâncias socioeconômicas entre os seres humanos, enfim, disso é que dependem os que se encontram no ápice da pirâmide, com o fim de lá permanecerem. Não há transparência. Não há verdades disponíveis. Nossa condição é a de sermos sempre enganados. Mas que descoberta, hein?

De resto, não mais me importava discutir abertamente alguma opinião sobre o país que nos cercava, sobre pacotes econômicos, sobre os últimos acontecimentos, sobre o esgotamento do regime militar, sobre as transformações aceleradas, sobre a anunciada reengenharia, que mal parece firmar-se e já vem sendo atropelada por uma nova onda, sobre a extinção de certas profissões e o surgimento de outras, sobre as tendências da tecnologia, fazendo prever, a um futuro próximo, uma nova classe de poder. “Quem comporá essa nova linha de governantes, milionários, figuras influentes e empreendedores, já pensaram nisso?”, eu perguntava, entre os colegas, durante algum intervalo para o café. “Quem irá controlar os mercados, as fusões, as evasões de capital, os destinos dos que trabalham e produzem? Quem será que vai nos esmagar?” Todos desconfiavam de minha sanidade mental.

Um dos escravos da contabilidade nos convidava, de sua mesa, a compartilhar cifras emocionantes, ao menos para ele, provindas dos resumos mensais e dos resultados de balancetes, que por vezes constituíam motivo de curiosidade e assombros otimistas, tendo como referência e tema, é claro, a Leôncio & Barradas Advocacia Ltda. “Olha só, olha aqui: o que eles recolhem mensalmente à Receita Federal, estão vendo aqui? Trezentos e dois mil, quatrocentos e sessenta e cinco cruzados, sessenta e oito centavos!” Esse escravo gosta de dizer o número todo, inteirinho, assim, até o último puto centavo. Tudo com ele é assim, tudo com esses homens é assim. Clemente, que estava próximo: “Menino! Imagine o que eles faturam!”. Eu também, participativo: “Imagine o que sonegam.”. Os escravos da contabilidade calaram-se por um tempo, de olho em mim. Muito, muito desconfiados.

O lavatório, porém, ainda era o mesmo.

“Hoje em dia, os cidadãos buzinam mais, e isso significa que estamos nos tornando mais agressivos, mais selvagens, menos civilizados.”

“Ou porque estão só nervosos.”

“Ou porque se fabricaram mais carros.”

“Mas quem disse que se buzina mais?”

“É, meu amigo, é o preço do progresso.”

“O barato às vezes sai caro.”

“Nem sempre.”

“Por isso, eu disse às vezes.”

“A coisa anda cada vez pior, onde vai parar este país?”

“Cada um por si, é a regra nos dias de hoje.”

“Quando não foi?”

“Mas deixa, que no fim dá tudo certo.”

“Deus é pai, não abandona seus filhos.”

“O jeito é se apegar a Jesus, é o que eu sempre digo.”

“Boa pedida”, disse eu, em harmonia com tais sugestões, mesmo não tendo sido convincente o bastante para dissipar aquele ar de suspeita que faziam pairar sobre mim, isso entre os aromas nada primaveris do ambiente, como se imagina.

52. A edificante manutenção do tédio – sequência

50. Não gosto que me chamem assim – anterior

Guia de leitura | Sobre o livro

Imagem: Sara Muzira. Fragmento de fábrica.

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