Office in a Small City por Edward Hopper

O telefone pela manhã

Não, eu não lhe digo isso. Ele é que parece dizer-me.
A racionalidade que faz de mim um homem prático parece não ter cura, leio em seus olhos.

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Que iríamos passear, era sábado. O centro, uma quinquilharia qualquer. No centro, como você gosta. Você entende? Ele não responde.

Desde que papai foi sepultado, três anos atrás, sou só eu que ele tem. Não faltaram, como em geral nunca faltam, almas sensatas que me aconselhassem a interná-lo. Mas optei por trazê-lo comigo. Somos sozinhos, sempre fomos. Mesmo quando todos estavam vivos.

Meu irmão é inofensivo, silencioso. Guarda algo da infância, melhor dizendo, de sua infância. Do que foram seus primeiros anos, das poucas brincadeiras que o distraíam, conservou o que é ele próprio, entre escassas memórias, e cresceu esse adulto secreto, esse rapaz profundamente nublado, essa criança triste.

Sobre a responsabilidade que pressupõe assumi-lo, é preciso que saibam: não se trata de um problema, sequer um incômodo – no dizer dos mais práticos, um fardo. Ele sabe fazer tudo que um rapaz de sua idade pode fazer, exceto encarar a vida com olhos cotidianos, mirando objetivos e interesses, planos de futuro. Ele não tem interesse nenhum, objetivo nenhum. E ajudou-me a ver, mesmo sem consciência disso, outras e diversas faces do mundo, entre elas a de que as pessoas não são importantes como a si julgam, cada uma dentro de si mesma. Como ele, aliás. Dentro de si mesmo.

Ele é tudo que restou de nossa pequena família, último elo com um passado esmaecido e sem atrativos. E talvez eu não o tenha com o amor de um irmão de sangue, se é que isso existe, pois ele representa, também, uma imagem de meu próprio passado, algo que me faltasse recordar ou não se permitisse esquecer, meu álbum do que não tive. Nenhum desses sentimentos (ou interesses) está esclarecido de minha parte. Meu irmão integra meu dia a dia como pudesse eu pressentir cada uma de suas reações, suas necessidades e silêncios, sua maneira de contar-me os sonhos pela manhã. Mano, quer ouvir o meu sonho? Mano, quer ouvir?

Sonho de seu mundo. São todos feitos de gelatina, e alguns se desmancham sem que alguém os toque. Homens de gelatina, mulheres de gelatina, reis de gelatina. Eu também participo de seu sonho, gelatina. Aí você desmanchou como os outros, e eu fiquei muito triste. Ocorria-me então, sem que ele soubesse e acima da tosca fantasia de suas palavras, que a estrutura óssea a dar-nos suporte vida afora servirá apenas a lembrar por mais tempo de que fomos um dia estas gelatinas em movimento, caminhando e respirando, muitas vezes incomodados justamente com isso.

Na noite anterior, uma taquicardia despertou-me para o surdo trabalho de órgãos que mal percebemos: se algo detivesse aquele pequeno músculo-bomba, era toda a minha vida que parava, extinguindo-se por sua única vez. Podem-se aferir em centímetros as dimensões do tórax e a circunferência do crânio, nos quais se encontram meus órgãos vitais, tudo que hoje sou, coração e pulmões, subindo pela garganta ou pela cerviz até o cérebro, nada que não seja gelatina, isso que vivi e aprendi, que julgo haver aprendido, o que alguma vez sonhei, as dimensões de meu travesseiro e seu enchimento, e tendo-me importante porque vivo, sim, eis a diferença, ao que parece, todo o tempo procurando por algo enquanto vivos, sem que nos reste outra metade sem tempo na qual nada há que se faça, que aí sim seria o absoluto aproveitamento de algo que nunca existiu de fato: o velho tempo. Tal a impressão do nada em que nos confundimos que parece (mostrar-se) simples morrer em nossa própria cama, longe do mundo e de qualquer pessoa, do que um dia tenha tido algum valor em nossa escala de critérios, nossa malha de ilusões em curso, que também é alheia. Interessava-me, ao contrário, ouvir os pormenores de seu sonho, como se ouvisse o rumor da verdade através dele, a fragilidade dessa dimensão que a nós, os normais, se afigura sólida, um sonho de gelatinas, o mundo pelo prisma de seus olhos, como nunca o desejaríamos ver.

Aí, acabou. Assim ele conclui suas narrativas. Seus dezoito anos nada somaram à infância de quatro. Só fisicamente se revela sua idade. Ciclos e processos, que nos condenam, ignoram que ele não tenha deixado seu mundo – e o consomem, como a todos nós. Pergunto-me: sua sensação de manhã, esta manhã, perdida na transição das estações em abril, será a mesma que me contagia? Talvez sim. Ele compreende tudo como uma pessoa normal, sendo sombras seu silêncio, o olhar abissal, um desinteresse por tudo o que possa sugerir algum valor para o resto dos homens. Nada disso o faz inferior ou me inspira pena, tendo em vista a cansativa jornada que une os cidadãos privilegiados pela sensatez, pela… nitidez?

Desaparece por um instante. Vê a vitrine, examina os artigos, como um indivíduo qualquer. Manequins exercem um notável fascínio sobre ele. As mulheres de plástico, por trás dos vidros, diz, são parecidas com nossas tias. (Nossa única tia, Vânia, era irmã de papai, sendo mamãe filha única.) Apontou uma dessas bonecas: tia Vânia. Tia Vânia aí dentro. Surpreso, mas sempre sem sorrir. A semelhança do tipo físico, cabelos escuros, roupas exuberantes, o despertara. Não é essa a tia Vânia. Tia Vânia mora longe daqui. (Transferira-se para a capital, amante de um deputado, e nunca mais voltara, sequer por ocasião da morte de papai.)

Certas doenças, mano, não têm cura. Assim com nossa mãe, com você, sob outro aspecto. Não, eu não lhe digo isso. Ele é que parece dizer-me. A racionalidade que faz de mim um homem prático parece não ter cura, leio em seus olhos. Vejo-o ante a vitrine, a dois passos de mim, sempre tão próximos, nós dois. Então, tira do bolso o velho telefone, melhor dizendo, o que restou dele, põe-se a discar um número que não sei. O disco tem algarismos apenas pintados, não se pode girá-lo, por ser uma única peça, mas ele simula a discagem sem se incomodar com o que nos remete a um agonizante pesadelo. Tia Vânia. Pois não. Alô. Tia Vânia? – ele nunca sai sem o seu telefone.

Sendo um objeto leve (só o que restou: o auscultador de plástico e a base com o velho disco descascado, tendo o fio flexível se perdido desde a infância), ele o traz no bolso das calças – ou do casaco, quando faz frio. Só então, quando se põe a falar ao telefone, é que os outros se dão conta de sua discreta presença: passam a considerá-lo ainda uma vez, antes de saírem rindo, dispersando-se em função de seus compromissos, desaparecerem. Ao menos, seus passeios servem a divertir alguns, talvez constituam o assunto curioso do jantar na casa dos cidadãos que, por acaso, o encontram. Hoje vi um sujeito com um telefone… Estão à mesa, depois frente à tevê, por fim verificando o alarme do relógio para o dia seguinte, outro sonho de gelatinas.

O preço está muito bom. Claro, com essa inflação… Coisas que ouve dos noticiários, de algum vizinho no elevador. Ignora o sarcasmo, a curiosidade dos que presenciam suas ligações, pois aí se dá o instante mágico, um extremo, o gesto máximo de sua alienação. Compenetrado, ele olha para baixo ou para os lados – mas não para alguém. Ao guardar seu telefone, murmura algo que não se compreende, no limiar do silêncio. E essa atitude nem sempre é notada, pois é comum verem-se cidadãos falando sozinhos pelas ruas.

Nada me impressiona, exceto sua seriedade: em raríssimas vezes, eu o tenho visto sorrir, sem uma causa aparente, em um momento qualquer. Que memórias, que imagens consegue distinguir em seu silêncio de criança perdida? Sombras, neblina. E às vezes sorri. Sempre ao telefone, quando isso ocorre. Fixando um ponto em linha reta. Olhos turvos, como se atravessassem os muros. Os vidros.

Sempre houve estranheza em seus olhos. Nunca foi uma criança atraída por brinquedos. Aos adultos, custava arrancar-lhe um sorriso para sua satisfação própria, não a dele. Mas houve um marco divisório nessa trajetória – algo que fixou sua alienação ainda sintomática e o impressionou para sempre. Se falo no Natal ou em nossos pais, ele me encara com crescente ansiedade, como reclamando a conclusão do que vou dizer. Mas não digo, e é só por estar distraído que menciono nossos pais em sua presença. Também não se apaga em mim a noite de Natal em que o surpreendi telefonando a seu primeiro fantasma. Alô. Alô…

A seu primeiro fantasma.

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Certas imagens cristalizaram-se, tal a precisão e a nitidez com que sempre as revejo. Assim, toda a noite da véspera de Natal de meus dez anos encontra-se gravada não como uma lembrança, mas como se voltasse a suceder no presente. Gesto por gesto, em todos os seus pormenores, para que eu a reconheça, para que pressinta ainda uma vez sua aura sinistra. Sobre sua lembrança de uma mesma situação que nós dois presenciamos, vejo-me rendido às tentativas de compreender os mecanismos dessa grandeza, a memória. Qual sua função, desde quando a possuímos e até quando nos será útil? O que é?

Papai deixando a casa de uma vizinha quando, por acaso, eu voltava da escola. Desde que mamãe adoecera, ele se tornara sempre mais ausente. Antes disso, ele já agia assim. Eu não queria crer, mas não podia negar o que de fato via. O que era a verdade.

Mamãe. O avanço da doença, gradual. A cama em agosto, ainda no inverno, permanecendo ali durante toda a primavera. Já havíamos nos esquecido do som de seus passos. Seu estado agravou-se em dezembro, inúteis as drogas e as visitas semanais de um médico inexpressivo, que se comunicava por termos científicos fora de nosso alcance. Eu não entendia tudo perfeitamente, mas era fácil e doloroso perceber que mamãe havia se deitado naquela cama para não mais se levantar. Dona Ângela, casa em frente, ajudava a cuidar dela, e por vezes nos trazia doces. Tia Vânia visitou-nos duas vezes nesse período. Nas duas vezes, papai não estava em casa.

Noite e véspera de Natal. Papai voltou-se por um instante, abriu a porta da frente, quando cheguei à sala. Cuida do teu irmão, papai volta logo. Eu e meu irmão vestíamos ternos cinzentos que sempre nos serviam em ocasiões especiais. O dele, de calças curtas, punha-o patético em sua baixa estatura. Ficamos vendo TV. Ainda o vejo com quatro anos, em seu terninho de festas, assistindo atentamente às programações e anúncios sobre o Natal. Até hoje, assiste ao Natal com esses mesmos olhos. Sem reação, sem perguntas, atento e fascinado. Será que se esqueceu?

Tia Vânia invadindo a sala, dois pacotes em papel colorido. Beija-nos rapidamente, como de hábito. Não posso demorar, queridos. Vestido justo, negro e reluzente, sapatos de salto, o baile de Natal em um clube muito frequentado. Suas roupas não disfarçam como também inspiram uma intensa sensualidade, nessa noite que imagino tão pura. Este é o seu! Entrega-me um livro ilustrado com aves da floresta. A meu irmão, o que julgou apropriado à sua idade, mas não é: um telefone de brinquedo. Ele olha o presente, busca os olhos dela com agonizante silêncio. Fala alô, fala! Trata-o como se tivesse um ano de idade, assumindo muito francamente seus sintomas de retardamento, sem se dar conta disso. É seu natural.

Dona Ângela e o marido, homem grisalho, de rosto sorridente e corado. Tia Vânia apressa-se nas despedidas, deseja um ligeiro feliz-natal a todos, repetindo que alguém a espera. O homem brinca conosco, tenta nos distrair, enquanto Dona Ângela se fecha no quarto com mamãe. Mais tarde, ela sai, procurando em vão reprimir um pranto que lhe dispensa as palavras. Meu irmão parece compreender tudo tão bem quanto eu, que infelizmente também compreendo. Os adultos conversam em voz baixa. Ele apanha seu brinquedo pela primeira vez. Alô. Alô…

Desde então, passou a telefonar sempre, discando, como em um pesadelo, os números pintados no plástico: chamando, esperando, buscando alguém do outro lado, a linha imaginária. O que se passa em sua mente, com quem pensa que fala? Que resposta espera?

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O policial de luvas brancas, o apito preciso, os gestos, sua racionalidade. São sinais. Atento ao cumprimento do dever, consciente de seu… Ora, uma pessoa não vive mais do que algumas décadas, não importa o que faça. Quem sabe a sepultura de meu irmão seja vizinha à desse policial. Mesma quadra, talvez. Nenhuma lápide nos revelará o íntimo de uma pessoa quando viva, o que foram seus sonhos, fantasias, remorsos e desejos secretos. Como eram suas mentiras. Se sonhava ser poderoso ou se acumulava bens. No que acreditava.

Quando nos foi ensinado que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, naturalmente isso não se referia ao aspecto físico, pois o deus imaginado era uma entidade espiritual. O policial de gestos brancos, eu e meu irmão somos humanos. Entre os que proliferam pelo mundo, os ingênuos, os mesquinhos, os mais verdadeiros e os sutilmente perigosos também o são. Qual deles se encontrará mais próximo à semelhança divina? Estes, dirão uns. Aqueles, dirão outros. Qual seja a resposta, como admitir que haja tipos dessemelhantes a Deus, sem que a afirmativa bíblica se mostre embaraçosa? O que seria então esse deus? Um homem?

Lateral grafitada de um edifício. Ele apanha seu telefone. Alô. Ainda falta. Precisa vir logo. Isso mesmo. Queda fascinado ante um muro ou parede branca em que se gravaram formas coloridas. Disca um ou dois números, aponta partes em branco, insiste com o interlocutor para que venha depressa colorir o que falta. Usa o telefone sempre que algo lhe desperta a atenção ou o perturbe. Precisa contar, não para alguém feito da gelatina deste mundo, mas para quem esteja fora de seu alcance – ou infinitamente em seu interior.

Um molusco é como uma gelatina, eu lhe dissera certa vez, mostrando a sequência de metamorfoses, desde as medusas do arqueozoico até os homens tal como os conhecemos. Ele assimilou tudo. Observava-me as feições em função disso, como a avaliar o resultado de tais processos em meu rosto. Voltava à ilustração e ao molusco ancestral. Seus olhos indagavam: o que foi feito desses moluscos? E todo esse tempo? E nós? A partir disso, penso, sua mente insondável elaborou o planeta de gelatinas que o revisita em sonhos.

Assisto a seus movimentos nessa manhã plena de luz, tão distante da treva dos moluscos. Ele age como se estivesse sozinho. Mas sabe que estou por perto. Detém-se junto a um grupo de cidadãos que lê as manchetes do dia, jornais à altura dos olhos. As pessoas esticam o pescoço, leem os destaques e saem, dando lugar a outras, que é o que todos fazem durante toda a vida. De repente, ele desaparece de minha vista. Não se encontra entre os leitores da banca ou diante das vitrines. Giro sobre mim mesmo, em estado de alerta, lanço a toda parte olhos subitamente aguçados, em vão – ele não costuma fugir-me assim. Volto-me, vejo que corre mais à frente, na mesma calçada, aproxima-se da esquina. Corre como se não houvesse o cruzamento, o delta das avenidas e seu tráfego feroz. Como se pudesse atravessar em meio a tudo, um fantasma. Disparo a correr contra o tempo do semáforo, sei que não posso alcançá-lo de minha franca desvantagem, ele a um passo de atirar-se ao fluxo ininterrupto. Antes que me escape o grito, ele para. Arquejante, tira do bolso seu telefone, põe-se a falar com medo e nervosismo, por pouco não irrompendo em pranto, ele que nunca chora. Alcanço-o, toco seu ombro. Ele ainda chama por alguém, pede que não demore, diz que está em perigo. Mantenho-me ao seu lado, esperando que se acalme, e ele por fim se dá conta de minha presença. Volta-se e reconhece-me, como se há muitos anos não nos víssemos. Os olhos inquietos e a face corada de pavor sugerem que ele vá, em seguida, abraçar-me e chorar, num lapso de desesperada lucidez. Mas seus olhos perdem o brilho, como por encanto, e voltam a seu abismo original. Outra vez me surpreendem – vejo que não sei decifrar seus olhos ainda. Toco seu ombro, seu rosto. Que foi? Não quer me contar o que viu? O medo o domina por mais um instante, risca seu rosto como uma faísca. Ele se volta distraidamente, fixa a banca de jornais. Convido-o a mostrar-me o que é, mas ele não quer voltar pela mesma rua. Dobra a esquina, e segue agora por essa outra calçada.

Duas quadras dão-nos um muro branco grafitado pela metade. Como de hábito, ele se posiciona, usa seu telefone. Detenho-me também, aguardando que prossiga, mas ele se demora mais que o normal. Outra banca de revistas, enquanto espero. Os periódicos são uma confusa janela do mundo. Nudez de ninfetas em meio à máscara dos ministros, guerrilhas dispersas, o surfista em boa forma, as vítimas do massacre… Um jornal traz como manchete: MENINA DE OITO ANOS VIOLENTADA E MORTA. Os três homens fugiram. (Homens, à semelhança divina.) Sempre uma incoerência encobrindo uma fatalidade, uma coisa aniquilando outra, sempre uma brisa e um crime, nós compartilhando tudo.

A manhã se deteriora, amarga em minha boca, feito uma fruta azeda. O dia me ameaça com menos esperanças. Tudo isso entre a brisa agradável do outono, tia Vânia e seu vestido negro em minha noite de sinos. E as manhãs cristalinas, os crimes, a indiferença. Volto a meu irmão, eu sem a calma de antes. Diante do muro, ele fala ao telefone. Parece dialogar seriamente, fixando um ponto distante, ao contrário de olhar para baixo ou para os lados. Então, antes que eu me aproxime ou chame, lentamente, em meio ao que nunca pressinto, ele começa a sorrir.

Mantém o sorriso sem desviar os olhos do muro, do que ainda há por colorir, e sorri, dentro de si mesmo. Cada um, dentro de si mesmo. Os assassinos do jornal, interiores. A memória atávica da humanidade, a vida sobre a Terra e os sonhos de futuro guardados pelos moluscos, os homens de gelatina que somos por toda parte, corações bombeando sangue por mais uma noite de sono.

Não ouso interrompê-lo, tão raro é que sorria. E fico onde estou, esperando apenas, ainda a sensação das manchetes. Posso compreender que se sinta em perigo, ele também uma criança, à mercê do mundo, a menina violentada é sua semelhante. E suas razões para telefonar freneticamente. Eu é que me havia distraído de quantos motivos há para telefonar sempre. Compreendo que não queira voltar pela mesma rua. Nem eu quero voltar à infância, ao passado da história e aos crimes consumados, sendo minhas ruas as mesmas. Ele fala docemente ao seu telefone, o fio há muito perdido. Docemente, como nenhum homem privilegiado pela normalidade. Não como se conversa com um amigo, mas com um anjo. Não uma pessoa, mas uma fada. O menino de olhar gêmeo ou a santa que namore com ele o namoro das crianças. Mantêm seu sorriso o sussurro, a voz velada de seus deuses secretos. Mas que deuses são esses? Que vozes? Quem é ele em si mesmo e por que seu sorriso se abre de maneira tão pura, à parte a falta de caminhos, longe de qualquer Natal? A quem se confessa tão sinceramente? Mano, quer ouvir o meu sonho? Mas eu não tenho nenhum. Sou um homem como os outros. E há tanto tempo não sei como é chorar. Meus olhos oscilam por um momento, considerando sua inocência, as manchetes, as manhãs que o cercam, sendo todos nós humanos, sempre em perigo. Posso vê-lo em seu terninho de festas, os anos que se repetem, papai deixando a sala e mamãe se extinguindo, o sonho dos moluscos e o mundo ante meus olhos adultos, duramente amadurecidos, adivinhando que seu sorriso haverá de esvanecer-se em breve, dando lugar à neblina de seus olhos mudos, profundos, como se não lograssem, mesmo à frente do espelho mais límpido, devassar seu próprio mistério.

 Lisette Maris em seu endereço de inverno

17. O circular retorna a seu infinito – próximo

15. Braile contra a luz – anterior

Guia de leitura

Imagem: Joan Miró. A esperança. 1946.

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