Office in a Small City por Edward Hopper

As duas vidas de Edmundo Campos

Fatias de mundo, história fragmentada (um dia apenas) em tantas cidades e países.
Cristaliza-se o passado. Passado da humanidade, registro dos grandes eventos. A memória de cada pessoa.

A literatura tem páginas de anjo, ratos sonhando, monstros melancólicos, outros nem tanto.

Very literary dreams, cap. II, p.11 (2a. edição, Vinci, 1766)

Vera não o esperava quando ele decidia trabalhar até mais tarde. Não o esperava quando terminava mais cedo. Não o esperava há tempos. Mesmo prevendo, como ele, outro encontro de corpos acostumados.

Noite adentro os volumes sinistros até que o texto começasse a ganhar forma, ideias enlaçando-se às palavras, períodos, um após outro, proporcionados e acabados. Edmundo deixou a mesa em desordem, apagou as luzes, foi para a cama. Ao lado de Vera. Vencido pelo peso amorfo do sono.

Professor de História. Historiador por vocação. Autodidata, pesquisador, compilador, ensaísta. Fruto do trabalho de muitas noites, o único livro: Estrutura e Análise das Principais Tendências Políticas no Período do Primeiro Império. Nenhum editor aventurou-se a publicá-lo, mesmo reconhecendo nele algum valor intrínseco. Alguns observaram o título longo demais, embora não tencionassem levá-lo ao prelo sequer com duas palavras na capa. Professor de História.

Café-da-manhã. Toalha estampada, flores de sempre, pequenas, esmaecidas, pouco alegres. Vera. O café fumegante, jornal ao lado da torradeira. Fatias de mundo, história fragmentada (um dia apenas) em tantas cidades e países, fatos associando-se a nomes de pessoas e lugares.

“Você está atrasado.”                             “Eu sei.”

“Mais açúcar?”                                        “Um pouco mais.”

Vera à sua frente. A mesa. Realidade concreta, pegajosa. A densidade do que lhe transmitia o periódico. A figura conhecida dessa mulher. Claridade cega refletindo objetos, vapor subindo ao nada.

“Volta para almoçar hoje?”                                   “Não sei.”

Palavras, o hábito. A História? Tudo acontece. Menor ou maior escala. Cristaliza-se o passado. Passado da humanidade, registro dos grandes eventos. A memória de cada pessoa. Edmundo: sensação oleosa das manhãs, fumaça à mesa do café. Vera. Sua história. O dia, um recipiente de tempo do qual não se pode fugir. Fosse outra a realidade, o presente: impossível alterar a consistência dos dias?

Seu pai transferira-se para aquela cidade quando jovem, por isso ele estava ali, seu filho. Gestos de uma vida no passado delineando o futuro de outras vidas. Filho único. Irmão nascido morto. Insondável futuro de outros caminhos. Rotina misteriosa dos que ainda são e estão, firmando-se sobre terras, ruas, cidades. Transitoriedade, fumaça.

Noite de trabalho. Mal conseguia concentrar-se. Refletia sobre a consumação dos detalhes, fatos aparentemente irrisórios, mas que teriam sido essenciais às grandes transformações. Se Jesus, o Nazareno, tivesse morrido de uma apendicite, qual seria hoje o símbolo dos cristãos? (V. Apêndice) Edmundo imaginou que pudesse formular, à maneira de Scaliger1, uma teoria das pequenas alavancas, com a qual tentaria compreender o movimento obscuro dos pormenores que desencadearam grandes fases futuras até o presente.

Degraus de uma entrada com as portas abertas. Um colégio. Sala do diretor. Um homem lhe sorri, cumprimenta-o com mão consistente, real. Corredores, salas de aula, as muitas portas. O café com outros professores. Tudo intenso, nítido e… familiar.

Vera, o café. A sequência do sonho voltava-lhe em detalhes, disposta a firmar-se na memória, invadindo a neutralidade de suas manhãs.

“Mais açúcar?”                                          “Um pouco.”

Toalha de flores esmaecidas, nuvenzinhas de vapor.

Mesa de trabalho. A incrível teoria. O passado intocável, a linha única do tempo. Edmundo supunha que houvesse outras, às quais não teríamos acesso. Talvez um feixe delas, todas acontecendo paralelamente. Mas isso já era consequência da exaustão. Temia também que todo o trabalho resultasse vão e sem apreciadores – perpassou-o uma agourenta alusão a Rético2. Mas prosseguiu. O passado, apenas um. Passado, presente, futuro: vocábulos grosseiros para identificar a posição do homem em relação à tal linha imaginária. A linha, sempre onde está. O presente, o cursor de um painel de rádio, apenas percorrendo a unidade estável do tempo. Mas que dizer de inúmeras profecias que pareciam ter se cumprido? – ou não necessariamente, pois delineavam de maneira muito vaga um evento qualquer, chamando a um líder príncipe do norte ou utilizando-se de palavras genéricas como discórdia, conflito, além de expressões como pedra sobre pedra, que podem sempre ser aplicadas ao resultado de qualquer terremoto ou bombardeio, e praticamente não significam nada. Nostradamus havia previsto acontecimentos futuros 3 e isso fazia crer que só havia um futuro, um único caminho para os fatos. Mas se, em outra linha, um outro profeta houvesse vislumbrado seu outro futuro, sua respectiva realidade, sendo outra, seria outra. A tal ponto se encontrava envolvido com suas considerações delirantes, que facilmente se desviava de seu propósito principal para alinhavar interrogações pueris como a que buscava o motivo de a Terra ser achatada nos polos ou o momento da história da vida em que teria surgido o sexo.

Ficou girando entre os dedos uma lapiseira vazia enquanto se repetia que um homem valia apenas pelo que pensava, não pelo que possuía, pois o dinheiro, o patrimônio não podem ser herdados para além de um certo descendente, o que não se dá com as ideias, cujo alcance faz par com a eternidade.

Segue por uma cidade que não é a sua e chega a um terminal de ônibus. Rosto de uma jovem que lhe fala, uma manhã de vento. “Não. Vai por outro caminho. É para onde eu vou também.” Tomam juntos o ônibus. Som de palavras abafado, distante. Rosto de beleza característica, tão real que julga poder tocá-lo, tocá-la. Quem era?

Olhando as flores apagadas. Uma imagem onírica que sua mente teria criado para seu próprio fascínio. O rosto inesquecível, palpável.

“Mais açúcar?”                                          “Pode ser.”

A fumaça. O vapor.

Não pôde esquecê-la durante todo o dia. Detalhes como a saia branca, as silenciosas sapatilhas, o enfeite metálico à altura do seio, fios de cabelo escapando-lhe da presilha…

As primeiras aulas da manhã, o ruído de vozes, tédio de alunos sonolentos girando a caneta na boca. Edmundo distraiu-se muitas vezes. No intervalo, um colega observou suas olheiras, insinuou, com um gracejo, que ele andava se divertindo (com Vera) até tarde. Ele sorriu, cansado.

Uma semana de sonos profundos, sem sonhos. Retomou a pesquisa com o mesmo fervor do início, excedendo novamente seus limites físicos.

O sonho.

Entra em casa com um pacote nas mãos. A porta da frente e a sala, muito familiares. (Jamais vira esse lugar antes.) Um interior de certa forma luxuoso. Uma garota se levanta do sofá, aproxima-se sorrindo. Beijo, abraço. A garota do ônibus. Espera por ele nessa casa. Ele chega com um pacote.

Manhã. Imagens descarregadas por seu inconsciente? Memórias do quê? De onde? Cotidiano em outra parte? Tudo tão nítido, real. Considerou Vera sem alegria. Ela não percebeu. As flores. E a fumaça.

Os sonhos insistiam. A linha inacessível de sua outra vida. Cortinas. A sala. Devia haver uma brecha no tempo, uma ponte entre a lucidez e o delírio, para o que não se pode ver em estado de vigília. Vai com livros pelo centro da cidade. (Que cidade?) Em outro ambiente, cumprimenta um homem grisalho, estante de livros ao fundo. Editora… – não pôde ler o nome. A mesma casa outra vez. O aposento que é seu dormitório. Abre o armário, escolhe uma camisa, dentre tantas. Ao lado, inúmeros vestidos. Coleção de calçados femininos. As roupas dela. Outro homem lhe sorri na sala. A jovem abraça o pai, que chega a sua casa, dela. De Edmundo.

As flores… Difícil retornar. O que existia. Não havia outro Edmundo vivendo sua outra vida. Nem a garota dos sonhos ou os homens que o cumprimentavam. Viviam em outra parte, cada um seu cotidiano. Não o seu: rotina dos colégios, alunos desinteressados, salário irrisório, livro rejeitado. Manhãs agonizantes, agora pelo que não eram. Pelo que deixavam de ser.

“Mais açúcar?”                                         “… ”

Em que ponto do passado a vida teria se bifurcado? Onde, a que altura o vértice de outro leque de dimensões? Que situação, que momento, palavra ou gesto? O vapor.

A resposta, o sonho.

O mesmo colégio da primeira vez. Agora pode ler a placa na fachada: o colégio, a cidade que só conhecia por nome. Anos atrás, uma vaga oferecida pelo Estado, recusada por ele. Proposta pouco tentadora, não valia a pena deslocar-se. Outra vez o editor grisalho. Detalhes de um coquetel, entrevista. Então, ali reconheciam sua obra? Ali onde? O mesmo mundo, só uma questão de… Uma questão de quê? Capa de um livro, tão nítida que poderia desenhá-la de memória. Palavras repetidas no fac-símile:

Edmundo C. Campos

ESTRUTURA POLÍTICA NO PRIMEIRO IMPÉRIO

O rosto de sua jovem esposa. Outros rostos, sorrisos. Congratulações.

Não poder reivindicar do passado! Flores na toalha, as manhãs. Do outro lado, tudo acontecia. Vera e o vapor.

Antes não tivesse tido acesso àquelas visões. Delírio, loucura. Exaustão e tormento. A mesa atulhada de papéis, os livros, ímpeto de atirar tudo pela janela. Pôs-se a rasgar os rascunhos de sua estranha teoria, como se houvesse por fim encontrado o responsável por seus distúrbios, suas frustrações. Sentia como se, a cada gesto e a cada golpe, a maldição se desfizesse. Vera o olhava da porta.

“Que foi?”                                      “Papéis velhos.”

Nem mesmo se interessava pelo que ele fazia. Eram apenas papéis. Mas vendo-a em sua camisola de verão e até como uma forma de fugir ao que o perseguia, pensou em arrastá-la dali para a cama. Foram para a cama. Deitaram-se. Vera adormeceu primeiro. Pouco depois, Edmundo era quem se deixava vencer pelo dia.

A escuridão do quarto, o cansaço. Aproximação de outro sonho, nitidez característica. Imagens de sua outra vida. A jovem fala ao telefone. Deixa o aparelho, irrompe em soluços, esconde o rosto entre as mãos. Edmundo entende que não está ali, junto a ela, que não tem voz nem poder de ação. Margem de uma rodovia, fundo de uma encosta desolada, rochosa, sol de uma manhã qualquer, carcaça de um automóvel destroçado, corpo de um homem entre as ferragens. Rolos de fumaça negra. Vê o rosto caído para trás, muito familiar. Sim, muito familiar. Sonha que corre e chora, explode em urros de horror. O corpo no carro acidentado é o seu.

Despertou em sua cama, sua verdadeira cama. Olhou ao redor. Na pele, a umidade do terror. Vera não acordou.

Flores que alisava com um dedo, na toalha. Claridade, manhã cristalina. Gestos previsíveis de Vera. E os seus.

“Mais açúcar?”                              “Não, obrigado.”

Tons esmaecidos. Café quente. Fumaça, vapor diáfano.

Noite seguinte. Outra. Outras. Nenhuma visão, nenhum sonho além do último pesadelo. Assistindo ao instante de orgasmo que fazia de Vera uma cúmplice na penumbra, pouco antes do seu, sentia como se selasse secretamente outro pacto com a consistente realidade que irresistivelmente o retinha. Fechara-se o ciclo, não era mais nada. Voltaram-lhe, aos poucos, sonhos confusos, pouco nítidos, fundamentados em seu cotidiano. Rostos de pessoas conhecidas. Ruas, situações. O mais era apenas escuro, opaco. Escuro e silencioso.

Apêndice

Entre as anotações do professor Edmundo Campos, enumeram-se curiosidades relacionadas a seus propósitos. Newton despertou seu interesse pela ciência após haver adquirido um opúsculo sobre matemática, em uma feira dos arredores de Londres. Einstein era uma criança tímida, com dificuldades de fala, o que motivou seu pensamento introspectivo. Todos conhecem a história do naufrágio de La Pérouse, em cuja expedição o jovem e ambicioso segundo-tenente Napoleão Bonaparte, aos dezesseis anos, tentara embarcar, sendo rejeitado talvez devido à sua origem não aristocrática. Para que Hitler se tornasse o que foi concorreram, além de sua inteligência estratégica, oportunidades políticas como o advento da democracia que o elegera, e mesmo o fato de ter sido um artista frustrado. Talvez Kafka não escrevesse, se fosse um advogado bem-sucedido. E Mozart, vivendo mais uma década, teria alcançado o Romantismo. Especuladores acreditam que o nariz da rainha Cleópatra não era bastante atraente para impedir que Otaviano voltasse a Roma: se ele houvesse ficado no Egito, como seu apaixonado predecessor, não teria desferido o golpe que pôs fim à República e iniciou o Império. “Um nariz!” (sic)

Analítico e remissivo

Campos, Edmundo Cunha (1986-   ), personagem de passado duvidoso.

Estrutura e Análise das Principais Tendências Políticas no Período do Primeiro Império, de Edmundo C. Campos, obra revista e posteriormente publicada pela Editora Horizontes Perdidos Ltda.

Estrutura Política no Primeiro Império (V. Estrutura e Análise das Principais Tendências Políticas no Período do Primeiro Império).

Nostradamus, Michel de (1503-1566), médico francês que passou à história por seus estranhos poemas, que antecipavam o Surrealismo.

Rético (1514-1576).

Scaliger (1540-1609).

Teoria das (Pequenas) Alavancas, estranha hipótese aventada pelo professor Edmundo C. Campos em manuscritos inéditos, mais tarde ampliada, aperfeiçoada e destruída.

Vera, tudo o que de fato existe.

1 Joseph J. Scaliger, erudito francês, em obra publicada (1606), esquadrinha fragmentos de registros históricos, compara-os cuidadosamente à luz dos ensinamentos astronômicos (!) de seu tempo, esperando encontrar traços de união entre eles, com isso deduzindo uma constante histórica simples. É considerado o pai da moderna cronologia.

2 Rético (Georg Joachim von Lauchen), matemático alemão, escreveu uma biografia de Copérnico que infelizmente se perdeu. Desenhou o primeiro mapa da Prússia Oriental, que também, lamentavelmente, desapareceu.

3 Nostradamus costumava ficar até tarde em seu gabinete, em uma desconfortável cadeira de ferro, para evitar que o cansaço e a mente fatigada o entorpecessem. Assim lutava contra o sono, mas também devido a isso, no delírio de sua consciência, ele adentrava as fronteiras do transe, fixando um ponto qualquer no movimento irregular das chamas na lareira.

Lisette Maris em seu endereço de inverno

22. Cenas infantis – próximo

20. Nádia alcançada, meu último rosto – anterior

Guia de leitura

Imagem: Amedeo Modigliani. A bela romana. 1917.

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