Office in a Small City por Edward Hopper

Nós, os fortes, te agradecemos

Uma maneira secreta de aceitar e negar a nitidez do mundo, seus perigos, seu silêncio.
Os ruídos que o revelam antes da música.

Olhando entre a noite e as grades do Orquidário e seu bosque, outra vez o que me invade ronda a alameda em perspectiva: postes de duas lâmpadas, sob globos sem rosto, bases ornamentadas, última linha de sentinelas contra a escuridão, o silêncio de luz esmaecida no jardim mágico onde, pela manhã, Deus parecia habitar entre as árvores, mas não hoje, sob a luz nostálgica de mesmo silêncio, principalmente o silêncio, quase um rumor contínuo, uma surdez, uma dormência.

Uma surdez. Uma dormência. No entanto, se move. Focos de luz solar atenuada pelas copas. Uma folha cai. Um sinal de Deus, penso entre as remotas manhãs de orvalho que precedem meu ser ainda. Volto da calçada por onde andei exterminando os cães da vizinhança com minha poderosa metralhadora de plástico. Duas amigas de minha mãe, também voluntárias da igreja, abrem-me sorrisos na sala e me abençoam à sua maneira. Deus flutua entre as árvores do Orquidário, mas sei que se prolonga de alguma forma nessas mulheres convictas que gentilmente me afagam. Que mais tarde trocam com minha mãe notícias sobre conhecidos e pessoas doentes, sobre as quais acrescentam: “Está melhor, graças a Deus.”. Esse mesmo deus as mantém e as cobre com vestidos estampados para que voltem à cerimônia dominical, quando agradecem, inclusive, por estarem vivas, antes de morrerem, e porque caminham sãs sobre a terra, também antes de adoecerem para sempre.

Uma folha cai. Deus existe. A árvore permanece. Podem-se podar seus ramos, como ficam as cidades após a guerra, desnudá-la de folhas, como fazem às porções humanas as epidemias e as desertificações. A árvore sempre está lá. Em sua surdez. Sua dormência.

Vou com meu pai pela mesma alameda que leva ao centro do Orquidário. No caminho, deparamos com um homem curvado e triste, parecido com ele e comigo, bem maior do que nós e da altura de uma árvore. Eles conversam sem que eu os compreenda, quase um murmúrio. O gigante está nu, corpo muito pálido, o pênis enrugado, de glande voltada ao chão de folhas, e parece não ter esperanças no que dependa de suas próprias forças. O sonho me intriga por muito tempo, pois vem da neblina e do mundo secreto com que se fez minha infância de estranhos silêncios. Meu pai vive um período muito difícil. O gigante impotente é o deus de seu matrimônio, de suas ilusões duramente golpeadas. Num diálogo próximo à mudez, consideram os fatos e o futuro do menino que ele ainda conduz pela mão, mas que em breve não terá mais para onde levar.

Em vão, a professora luta para nos impedir: o silvo da locomotiva e os ruídos de ferro que trazem o trem nos põem alvoroçados a caminho da confluência onde se realizam as manobras, nos confins da cidade, bem perto da escola rústica, em suas ruas de terra. (Também em meus sonhos, esse mesmo trem manobra junto ao largo portão do Orquidário, antes de partir rumo ao bosque dos fundos, à intimidade velada das árvores, ao centro de Deus.) Em vão, revejo os meninos encardidos, o longínquo horizonte de poeira, o fatigado espaço. Em vão, ainda guardo a voz e as ameaças dessa professora, quase tão pobre quanto os alunos; em vão, recordo as preces que nos ensinava ao fim de cada aula, antes que partíssemos. “Nós, os teus servos, damos graças por mais este dia. Nós, humildemente, te agradecemos.” Ao fim de cada dia. Antes que partíssemos.

Agora que sei ler, debruço-me sobre as enciclopédias que a biblioteca pública franqueia à minha confusa curiosidade. Interessam-me principalmente as biografias. Quero crer que o passado registre outros como eu, para quem o mundo parecia muito misterioso e para quem as coisas nunca se mostravam verdadeiramente claras, solucionadas ou definidas como as veem os que serenamente transcorrem. Os que passam. E agradecem.

Deus não é apenas o criador dessas mulheres. É a um tempo sua maneira secreta de aceitar e negar a nitidez do mundo, seus perigos, seu silêncio. Os ruídos que o revelam antes da música. Toda vez que reencontro, entre as grades, a mata ao fundo da alameda, o que procuro, como a criança leva ao ouvido a concha que supõe guardar o mar, é o rumor contínuo que mascara o silêncio, eco indecifrável dos abismos de minha infância. Noite de globos feéricos, alameda de um mesmo silêncio. Ainda assim, ocorre-me perscrutar a concha. Mas sem crepitações, antes o instrumento de outra singular frequência, uma espécie de grave zumbido perdendo-se à distância, um motor infinitamente macio que gerasse, bem próximo ao som surdo do silêncio, uma dormência ao fundo de tudo e, em lugar de sinais, um silêncio maior. Sem palavras que o distorçam. Símbolos que o esgotem. Outra presença, o cão que me fareja, único movimento ao redor. Não tenho mais a arma de plástico. Deixo que esse animal triste aproxime da minha sua solidão. Somos criaturas, nesse momento, sem rumo, atravessando estranhas realidades. Nenhuma brisa e um encontro. Uma noite flui. Uma folha cai.

A enciclopédia destaca Copérnico, Galileu. (Mas por quê?) Servet e Giordano Bruno contrapondo-se à plácida convicção que une à minha mãe suas amigas, superpondo-se, cada um deles, à imagem dessa mulher que parece ostentar, ainda no esquife, o pequeno sorriso com que acaba de entregar a Deus sua vida sem perguntas. Fecho a enciclopédia. Outros livros me espreitam. Releio uns versos em que o anjo de fogo vem varrer a face da Terra, quando os homens sacrificados dobram-se a pedir perdão. O poeta me aconselha que não o faça.

Quando crianças, vemos nas ilustrações dos livros as árvores, as florestas por onde os personagens se perdem. Eu conhecia os livros e as árvores. A floresta próxima era uma extensão de meu mundo mágico. Não era diferente ter morado naquela casa e naquela rua, na vila vizinha, a travessa próxima, a rua sem saída que abre o Orquidário: eu morava em toda parte ali. Só estão pondo abaixo a pequena casa, golpes que sempre mais a desnudam do velho reboco, revelando, pouco acima do chão, à altura de uma criança, a mureta de pedras que eu não conhecia: um sólido alicerce sob a pele áspera da alvenaria, seu segredo. Ali as palavras moveram-me pela primeira vez à invenção. Às frestas. Às minúcias que protegem os mistérios. Só não imaginava que havia outro alicerce sob a parede antiga. E que minha infância se erguia sobre uma base de pedras.

Uma das mulheres mostra-se pela última vez. O velório lembra, de certa forma, as cerimônias de círios, mas declinando a outra amostra de silêncio, quase um gesto imperceptível de renúncia. Revejo o percurso, o cemitério da pequena cidade, pátria de almas muito velhas, nomes e números sem nenhum poder de resgatar tantos estranhos sem idade, a indiferença com que o funcionário assiste à chegada do féretro, o cortejo de pessoas chorando, passando pelos grandes portões do mundo, que, em algum momento, haverão de abrir-se rangendo para deixá-los a todos sair. Lá dentro, as cinerárias e as coroas, a hera e os degraus quebrados, estranhos arbustos estourando lajotas, lianas escuras, ruídos de vento, insetos e outros rumores avulsos que nada querem dizer. No esquife, segue outra vítima do silêncio. De quem emudece entre ruídos. De quem não sabe que dorme. De uma folha que cai.

Aqui tens o espelho da floresta, sem abismos, a vegetação conhecida e sua manhã. Não é o mesmo trem que manobrava em teus antigos sonhos: agora te encontras pronto a partir e a ficar. Antes que adentres o bosque. E fosse possível penetrar a mata fechada, a infância fechada em si mesma, à margem das chuvas que tornam claros os verdes, tão sutilmente variados. És uma folha. E estás livre de Deus.

Deus não existe. Uma folha cai. No infinito silêncio contínuo em que se fragmentam os pequenos silêncios, meu pobre silêncio. Frente à breve chance de obscuros resgates, ao fundo o zumbido abafado que a respiração do cão afasta, mas não extingue. E permanece feito um ruído de concha impregnado de silêncio, outra vez o silêncio: um vasto silêncio, uma surdez. Uma dormência.

Lisette Maris em seu endereço de inverno

33. Crônica de canção feita ao mar – próximo

31. Cães de Caça entre a Lira e Leão Menor – anterior

Guia de leitura

Imagem: John Atkinson Grimshaw. Alameda enluarada. 1874.

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Comentários

2 respostas para “Nós, os fortes, te agradecemos”

  1. Avatar de Perce Polegatto

    Caro Allan, muito obrigado por seu comentário, por sua observação.

    Quando são citados Copérnico, Galileu e outros, o menino está conhecendo enciclopédias, começando a ler sobre eles. O texto não apresenta uma sequência cronológica: o narrador retorna à infância e a outras fases nas quais seu pensamento se modifica, se reformula, se reencontra para poder considerar tudo isso no presente.
    Abraços, me escreva sempre, é um prazer.

  2. Avatar de Allan Duarte
    Allan Duarte

    Muito interessante esse texto e a forma de escrever me soa familiar, parece-me algo que eu já tenha lido no passado, algum livro autor.

    É um texto simpático, fala de deus, nega-o na conclusão se entendi bem, mas de uma forma que acredito eu, não atacaria o ego religioso uma vez que a capacidade interpretativa de um religioso no geral é eu diria no mínimo limitada o que nos da certa vantagem.

    Achei estranho confesso quando cita Copérnico, Galileu, parece por um instante fugir da forma como o texto foi se desenrolando mas logo depois volta à sequência do texto.

    De fato a natureza decorre, com ou sem deus ainda que ele seja uma hipótese nada muda na aceitação ou negação do mesmo.

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