Office in a Small City por Edward Hopper

Passeios, pensamentos, posições

Exageros à parte: podia haver algo mais perverso que a natureza?
Suas relações de brutalidade, sua fome de preservar-se, ainda que para isso não apresente sequer um objetivo, uma razão que a justifique.

Ela o arrasta ao centro, às lojas, às confecções. À papelaria. Os emblemas, as gravuras, os adesivos, os pôsteres, os cadernos. Os cartões.

Júlio detestava cartões.

“Olha esse, que lindo!”

Estão ali, como sempre: jovenzinhos que ainda não entendem a vida, paisagens casuais que a imaginação dos simplistas atribui à criatividade divina, frases enfeitadas que o sarcasmo dos maldosos chama sabedoria popular. Auroras, crepúsculos. Cãezinhos, gatinhos, esquilinhos. Cordeiros, coelhos e toda sorte de bichos ingênuos.

A magnífica catarata-cartão-postal é obra de Deus. O grande terremoto-trágico-fatal é culpa da natureza. Você há de convir, o jogo é desigual.

       O amor é o sol

       que ilumina a vida

                               Um sorriso vale mais que mil palavras

                         Quando olho a natureza

             compreendo a simplicidade do amor

Exageros à parte: podia haver algo mais perverso que a natureza? Suas relações de brutalidade, sua fome de preservar-se, ainda que para isso não apresente sequer um objetivo, uma razão que a justifique. Júlio ficou quieto, claro.

O… lha!… Es… se! Que meigo! Um doce!”

Se as suas obrigações o incomodam, lembre-se…

“Aqui, seu bobão: Amanhã, depois da aurora, será um novo dia.”

Duas crianças descalças, sob uma árvore raquítica, pouco frondosa. O garotinho arrancara uma flor de algum lugar e agora a oferecia timidamente a uma garotinha sardenta que, a julgar pelo horizonte inacessível e a névoa dos desfiladeiros, devia ser a única pessoa num raio de muitos quilômetros. Perto deles, uma galinha e seus pintinhos a tudo assistiam, felizes. Subentende-se: os galináceos não suspeitam que o garotinho irá um dia torcer-lhes o pescoço para que a garotinha os prepare com molho e tempero. Ora, as galinhas não têm condições de perceber tais coisas.

Vanda, voltando-se a ele, suplicante:

“Quando é que você vai me mandar um desses, amor?”

Quando a minha decadência for completa, pensou.

“Qualquer dia.”

Braços dados, passeiam pelo calçadão.

“Você tá tão quieto, no que tá pensando?”

“Alguma coisa me ocorreu agora, quero dizer, uma espécie de ideia. Não sei. Não sei se é isso.”

“Tem vergonha de me contar?”

“Não. Claro que não. Quer ouvir?”

Ela faz que sim com um gesto, aceno quase imperceptível da cabeça, olhar travesso de curiosidade.

“Sabe, Van? Os antigos caçadores acreditavam que um certo senhor dos animais, um animal-mestre, enviava as manadas, sua caça, de algum lugar para além do horizonte, para além do plano visível da existência. Com o tempo, descobriu-se a circunferência do planeta, e assim os territórios se desdobraram ainda mais. Hoje sabemos de enormes distâncias cósmicas, e já não temos para onde apontar quando se trata de um plano imaginário situado para além da existência. Mas o que eu sinto, Van, o que de fato eu sinto…”

“Sim?”

“É que tudo isso não se estende pelo espaço, entende? E o inconcebível plano para além da existência estende-se por aqui mesmo, por entre as ruas desta cidade, por aqui, ao nosso redor, isso para não dizer: apenas dentro de nós mesmos. Já pensou?”

Silêncio.

“Já pensou que toda essa infinidade de… Que foi?”

Silêncio.

“Era nisso que você tava pensando?”

“Era. Às vezes eu… Como assim? Por que a pergunta?”

“Não, nada. Achei que… Você fez um suspense…”

Outra vez o quarto do motel, imagens de países asiáticos e africanos, tudo sugerindo outros mundos, incitando a novas experiências e aventuras, próprias à ousadia desses destemidos amantes.

“Você já fez assim alguma vez?”

“…”

“Se incomoda de me dizer?”

“Que interessa isso agora?”

“Deixa eu ver o seu rosto.”

“…”

“…”

“Que mais você quer?”

“Não sei. Sentir, só isso. Suas mãos. Sua delicadeza e sua força. Você às vezes me surpreende, sabia? Às vezes…”

“Continua. Gosto quando você fala.”

“Não sei se quero falar. Sua respiração também me excita. Seu fôlego, seu resto de voz.”

“Quer mudar?”

“Não.”

Os últimos dias de agosto

62. Papéis com imagens, ossos para não esquecer – sequência

60. Competências, habilidades, trabalho em grupo – anterior

Guia de leitura

Imagem: Édouard Leon Cortès. Café de la Paix.

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