Office in a Small City por Edward Hopper

Voyager 2

Será que ainda não contaram isso a ninguém? A jovem locutora à frente da tela sorri às vezes, irradiando encantos.
Meus semelhantes seguem tranquilos, serenos e responsáveis como se cada um deles…

“Boa noite, capital! Temperatura em declínio, deve cair mais amanhã. Esta é a estação mais alegre da cidade!”

Todo telejornal tem um mapa-múndi ao fundo, inclusive a edição regional. A vinheta lembra que eles têm um compromisso com a verdade. Muito bem. Os fatos como eles são. A verdade nua e crua. Frases do gênero. Que cretinos. Sempre apostam na crença geral dos telespectadores. Não é bem uma aposta, eles se apoiam em pesquisas, cretino é você. Muito bem. Por isso eles sempre ganham. A apresentadora, jovem, bela, elegante. Será que ela nunca pensa, ainda que nos bastidores da produção do noticiário, ainda que nos bastidores de sua própria vida, que tudo isso vai acabar? Será que isso nunca a incomoda, nunca lhe faz mal?

“Essa droga de jornal sempre demora pra acabar…”, Vanda melancólica.

Pois não somos como uma florada, perde-se Júlio, de olhos fixos, repetindo-nos em outros indivíduos através do tempo? O campo de flores é o mesmo há infinitas estações, não é assim? Mas cada flor, individualmente, desaparece. A que vemos hoje é apenas uma. É apenas ela mesma. Não aquela que nossos ancestrais viram. Será que ainda não contaram isso a ninguém? A jovem locutora à frente da tela sorri às vezes, irradiando encantos. Meus semelhantes seguem tranquilos, serenos e responsáveis, como se cada um deles…

“Ah, agora sim!”, Vanda numa excitação característica de quem vai bater palmas no instante seguinte.

Fim do telejornal. Capítulo da novela. A atriz cuja expressão de surpresa pode também sugerir uma expressão qualquer de tédio. Inesquecível. Seu colega, um rapaz apático e tão inexpressivo que pode passar por morto. Quanto ganha por mês um ator assim? Não, nada disso é pior do que os diálogos, mas o fato é que Júlio está apaixonado, não quer ir embora. Vanda hipnotizada. Absorvida por aquelas cenas mornas, estas e outras falas previsíveis que se sucedem até que (vale a pena ver a cara dela), no auge da emoção, entra sem piedade a vinheta estridente, o intervalo frustrando milhares de telespectadores. Milhões. Estatísticas. Todos os que nada sabem sobre as emissoras que os tratam como menores mentais de quinze anos, repetindo produções nas quais grandes empresários, mulheres em busca de ascensão social, crimes sem nenhuma pista, triângulos evidentes e bastardos rastreando os verdadeiros pais desfilam continuamente suas expressões e falas de conflito. O boneco sorridente, corado de sol, toma todo dia o suco vitaminado que o conserva forte e saudável. Sai num carro de lataria reluzente, desses cuja marca é impossível adivinhar, e se encontra com uma morena belíssima, tão entusiasmada quanto ele, também mostrando, sem nenhuma vergonha, o produto mágico que vem numa caixinha e tem de ser diluído em água para fazer-se o suco do sucesso. A mulher serve o café da manhã à família. Estão muito felizes, porque a manteiga que usam é melhor do que todas as outras. O gerente convida a todos para conhecer o banco. Todos! As garotas sorriem aos clientes, e os caixas não conseguem disfarçar seu contentamento quando alguém lhes traz algo para fazer. Todos adoram trabalhar. O cigarro preferido dos grandes aventureiros, e não só isso: ei-la que vem a seu encontro, aquela que é simplesmente linda, e o rosto dessa jovem fecha a última imagem de uma agradável sequência, notável a fotografia, fundo musical irrepreensível, não fosse a enjoada placa azul, ao fim de toda a aventura, advertindo que fumar provoca câncer, derrame cerebral e uma variedade de doenças aborrecidas. Ninguém há de negar que o bicho homem parece mesmo muito inteligente.

Fim do capítulo, Vanda: “Parou num pedaço ótimo!”.

Haverá vida inteligente fora de nosso planeta? A Voyager 2 deixou o sistema solar e prossegue rumo a outras galáxias, levando em seu bojo, entre diversas informações, uma gravação do Concerto N°. 2 de Brandenburgo, de J. S. Bach. A quem a encontrar, bastará apertar um botão. Os idealizadores do projeto esperam mostrar a outros povos a música da Terra.

Júlio repassava os discos na estante. A estação mais alegre da cidade.

“Desliga esse rádio. Vamos ouvir música.”

A música barroca preencheu a sala com seu brilho de cravos, violinos, oboés e flautas alternadas. Concertos centenários desafiando o tempo. Ainda. Bastava apertar um botão.

“Esse disco é seu?”

“Acho que é da Lea.”

O disco era uma daquelas pedras de Roseta, contracapa em três línguas, russo, alemão e inglês. Júlio o devassava, concentrado e curioso. Por um momento, perpassou-o outra faísca de suas pretensas suspeitas de revelações, como quando conhecera o segundo movimento da sétima sinfonia de Beethoven ou o terceiro da terceira de Brahms, ou outros mais que se mencionem, específicos, singulares, trechos que denunciavam o inominável, o que houvesse de ilegível sustentando o legível. Mas, depois de ouvi-los muito, era como se os compreendesse, e então eles perdiam a transcendência, pelo menos em parte. Vanda mencionou a poeira na estante. E assim iam todos.

“Você gosta dessas coisas, é?”

“Coisas?”, Júlio sem vontade de desenvolver quaisquer ironias, mas em silêncio dirigindo-se a si mesmo: “Sim, querida Van. Essas coisas… É preciso conhecer e prosseguir. É necessário que encontremos muito ainda. É mais tarde do que você imagina.”.

Vanda, aliás, parecia bastante entediada. Mas quando a faixa seguinte trouxe a Júlio a melodia das ruas, a que lhe acontecera certa vez, em meio a uma de suas solidões, ele não pôde pensar em mais nada.

“Sabe que música é essa?”, extremamente excitado.

“Não. Qual?”

Correu ao disco. Quinta faixa. Albinoni. Adagio. Lia, relia, pronunciava as palavras mágicas, ao fundo a música fluindo: Albinoni. Num dia qualquer. Quinta faixa. Quinta-feira. Quintessência. Vivia, outra vez, a solidão de havê-la identificado pela primeira vez. Naquele outro dia cinzento, não se detivera o bastante. Agora compreendia. Albinoni, então ele o havia encontrado.

“Eu o encontrei!”

“O quê?”

Os últimos dias de agosto

64. Nas escadas, mas não muito – sequência

62. Papéis com imagens, ossos para não esquecer – anterior

Guia de leitura

Imagem: Juan Gris. O violino (detalhe central). 1916.

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