Office in a Small City por Edward Hopper

A menos que se instalassem dois sóis

Dia e noite poderiam ser suprimidos se o planeta não girasse, um acaso mecânico, nada é tão místico assim.
Mas haveria, de qualquer maneira, um grande lado escuro e um grande lado claro…

Da primeira vez que ouvira esse adágio, sem mesmo conhecê-lo por nome, tivera o intenso e grandioso desejo de que por toda parte somente se ouvissem Vivaldi, Brahms, Prokofiev e similares. Mas assim como não há palácios de cristal aos quais não se possa mostrar a língua, sempre haverá instrumentos selvagens e arranjos precários. Não só isso. Também vi logo esfriarem meus magníficos ideais quando, por um instante, entrevi o risco de se fazer constar, da mesma proposta, outro lado da Grande Música, por exemplo as peças mais chatas de Händel, Gluck, Saint-Saëns ou do próprio Albinoni, sob outro aspecto, aos olhos de outros que não eu, presa da emoção e do momento. Já pensou? Nielsen, Bortnianski, o velho Strauss – entre outros, claro. Vamos, esqueça isso. Vamos esquecer isso. Sim.

Sua atração por Vanda entrava sorrateiramente em outro estágio, o que lhe era difícil admitir. Vendo-a dormindo, pensava: ela é tudo o que um homem poderia desejar e tudo o que eu poderia sonhar, o que tanto sonhara minha adolescência. Observava suas mãos e seus pés, imaginando que o tempo estivesse sempre escorregando por entre seus dedos, entre nossos dedos, entre meus dedos: o que está acontecendo… comigo? Claro que não ficava imune a todas as vezes em que a surpreendia deitada de bruços, lendo uma revista, ou arranjando o rabo de cavalo, antes que todo o cabelo outra vez caísse ao redor do rosto, mesmo ante a espontaneidade com que fazia trocar-se à sua frente. Mas havia algo. Ele não sabia. “Que foi?”, ela enquanto vestia uma calcinha. Algo. Ele não sabia.

“Olha só o que ele está dizendo.”

“O quê?”

“Que você nunca deixa ele chupar…”

“Deixo sim, bobo. Você é que nunca pediu.”

“Olha, olha só o que ela tá falando…”

“Não fui eu, foi ela. Mas não era pra você.”

O sexo move o mundo. De maneira direta ou indireta, obviamente ou quase acidentais, os estudantes se referem a situações eróticas o tempo todo, enquanto tomam sorvete. Trocam gracejos, brincadeiras, em nenhum momento parecem ter notado seu observador, sentado a duas mesas, mais precisamente no balcão em que toma café. Tanto quanto o mecanismo do acasalamento faz girar suas engrenagens ininterruptamente, Júlio, por sua vez, não consegue deixar de pensar. Não é uma intenção. É também natural, portanto, obrigatório. Tenta compreender as grandes divisões de que se compõe o mundo, como o fato de a vasta maioria dos seres vivos classificarem-se em macho e fêmea. Se assim não fosse, por que pretenderia estender-se com Vanda? Por que gostaria de limitar sua vida à dela? Ou a dela à dele? Os chamados pares de opostos parecem minar a existência com sua arbitrariedade, inclusive antecipando os engenhosos sistemas binários, e assim se apresentam o dia e a noite, a vida e a morte, passado e futuro, positivo e negativo, mais e menos, somar e subtrair, multiplicar e dividir, macho e fêmea, como já dito e inevitavelmente. Há nuanças entre o bem e o mal. Mas não há uma operação intermediária entre a multiplicação e a divisão. Não há, por exemplo, tanto quanto esse arguto pensador pode recordar, um número que não seja positivo nem negativo, que se enquadre em algum outro plano. Os desvios sexuais, de alguma forma, são extensões de dois únicos sexos, pois não há uma terceira alternativa. Dia e noite poderiam ser suprimidos se o planeta não girasse, um acaso mecânico, nada é tão místico assim. Mas haveria, de qualquer maneira, um grande lado escuro e um grande lado claro, a menos que se instalassem dois sóis, um de cada lado, o que seria no mínimo… No mínimo o quê?

“Ai, só deixei uma…”

“Ele já quer dar outra.”

“Outra, só mais uma. Prometo que não vou morder.”

“Você me enganou.”

“Se morder de novo, vai se ver comigo. Porque aí eu vou querer também.”

Outra sessão de risos e exclamações desencontradas, numa descontração quase contagiante. Quase. Afinal, da divisão se origina a multiplicação, isto é, os semelhantes são divididos sexualmente e, a partir disso, geram novas cópias, com isso multiplicando-se, pois mesmo os unicelulares… Que diabos tenho eu com isso? Estava apenas pensando em Vanda, ou melhor, preocupado com isso. Com sexo, sob outro aspecto. Chegara a cair na armadilha das frases feitas, concordando que o sexo era o que movia o mundo. “O sexo é o que move o mundo.” O sexo é o que move o mundo?

 Os últimos dias de agosto

66. Uma sombra a caminho – sequência

64. Nas escadas, mas não muito – anterior

Guia de leitura

Imagem: John Cook. Honrando a vista.

por

Publicado em

Comentários

Comentar