Office in a Small City por Edward Hopper

Uma sombra a caminho

Ali estavam as bonitas pernas de Lea, de proporções prontas a qualquer prova, o desafio velado à concretização de um desejo, às expectativas de um artista ou às expectativas masculinas apenas.

Manhã de sábado, algum vento. Sol ameno, agradável. Temperatura de outono. Júlio respirava o dia como se todos os fantasmas se dissipassem de uma vez. De uma última vez. Até a cidade lhe parecia em ordem. 1:37 – o digital da avenida. Eram oito e meia.

Lea abriu a porta, olhos remelentos, sorriso de surpresa e sono.

“Oi, Júlio.”

Beijou-lhe o rosto, quase um beijo no ar. Pediu que entrasse. Robe azul claro, curto. Sandálias calçadas pela metade.

“Acordei você?”

“Deu pra perceber?”

“Ponho você pra dormir, quer?”

“Filho da puta”, Lea esfregando um olho. “Vem cá, vou fazer um café.”

Júlio a seguiu até a cozinha.

“A Van não me avisou que você…”

“Ela não sabia. Resolvi. Ela está melhor? Está dormindo?”

“Não. Deve ter saído.”

Júlio sentou-se à mesinha, ficou olhando os escorpiões na parede. Caudas, caules. Pinças, folhas. Flores, vá lá. Olhava também as pernas dela, girassol tendencioso. Mas estava pensando em Vanda.

“E o Bruno? Não viu mais?”

“Nem me fale nesse… Nesse…”

Era assim. De alguma maneira, ele sempre as passava para trás. Por um momento, Júlio ficou constrangido, quase se desculpou por ele, um impulso ridículo. Não tinha nada com a história.

Um homem jovem e bonito, feições rígidas, arma na mão, traje a rigor, gravata borboleta, pronto para ir a uma festa. Abraçada ao seu ombro, uma loira de cabelos longos e lisos, de admiráveis dotes físicos, inteiramente nua. Isso constituía um enorme mistério para Júlio: por que não estava vestida? Por que ele não estava nu? Por que não os dois, uma coisa ou outra? Onde era a festa? Por que a arma?

Por que ao lado da fruteira?

“Bom esse livro?”

“Esse aí? Está hó-timo!”

Júlio ficou quieto.

“É a história do herdeiro de uma fortuna que vive cercado de amantes. É muito psicológico, sabe? Ele vive se questionando, nunca sabe qual delas gosta dele de verdade ou só está interessada no dinheiro. O pior (ele ainda não sabe disso) é que a amante predileta dele, a que ele ama de verdade, é irmã dele por parte de pai. E ainda uns caras vivem tramando contra ele. Já sofreu tanto, se envolveu com drogas, uma loucura!”

As livrarias que Júlio frequentava, as prateleiras dos romances, as vitrines, a disposição dos títulos conforme seus olhos se deslocavam em sua busca quase automática:

 
A HISTÓRIA DE UM GARANHÃO                MEMÓRIAS
D                                                                     DE UM
 A HONRA DE                                              SEDUTOR
DE UM
  GÂNGSTER 
 
OS RICOS                                                          OPERAÇÃO
TAMBÉM SOFREM                                          DIAMANTE
VERMELHO
              O SOL
AINDA SE LEVANTA

C

Claro, ele sabia: cada vez ficava mais difícil encontrar um livro de verdade.

“Você também gosta de ler?”

“Mais ou menos.”

“E romance?”

“Romance não.”

“Não? Nenhum?”

“Alguns. Mas já li.”

“Engraçado…”

“Engraçado?”

“Um cara como você não gostar de ler. Fazer o quê? Gosto não se discute, não é?”

“Infelizmente.”

“Tá bom de açúcar?”

Por que ao lado da fruteira? Por que tantas páginas? Perto dali, numa frágil estantezinha de vime, inúmeros exemplares de revistas especializadas em celebridades e rostos representativos da mídia televisiva. Admirados e amados apenas por serem conhecidos do grande público, independentemente do que façam. Os sorrisos se repetiam para além das capas, os comentários enaltecendo as virtudes, a sociabilidade e a generosidade dos bem-sucedidos, enfocados sempre como se fossem, todos eles, felizes e honestos.

Foram para a sala. Sentada, Lea disfarçou a barra do robe, descruzou as pernas ao sentir que os girassóis de Júlio as perseguiam (por que não mostrar? por que não ver?), mas parecia preocupada com alguma outra coisa.

“Sabe aonde ela foi?”

“Quem?”

“A Vanda.”

“Não, não sei.”

“Será que demora?”

Lea olhava os próprios pés, dissimuladamente. Ele lhe perguntou se tudo ia bem, ela demorou a responder.

“Olha, Júlio…”

O que era afinal? Júlio quase adivinhava que uma sombra furtiva punha-se a caminho para arruinar-lhe o dia. A manhã especial. Brisa e sol ameno.

“Você me perguntou se ela…”

Certo, ele adivinhava. Uma sombra.

“Ela saiu ontem. Não voltou ainda.”

Ele ouviu, inerte. Sua xícara começou a tremer. Não respondeu. Esperava que Lea não se calasse. Mas nada lhe perguntava.

“A cama tá arrumada desde ontem. E ela nunca arruma a cama pela manhã. Não só isso. Essa dor de cabeça que ela… Ela nunca esteve tão bem de saúde, compreende? E não é a primeira vez. Um colega de classe, se não me engano. Não tenho certeza. Ela mente muito. Acho que ele… Você tá me ouvindo?”

“Quem, eu?”

“Sei que isso não é fácil. Eu também já me senti enganada, você sabe. Achei melhor contar de uma vez. Me desculpe se…”

A xícara. Era preciso segurá-la com cuidado. Lea, num pequeno sorriso, tentando atenuar-lhe a tensão:

“Acho que ela e o seu amigo têm algo em comum.”

Sem saber por quê, viu, num relâmpago, Bruno e Vanda beijando-se com violência, os corpos nus sob a luz amarelada de Gauguin, o espaço impregnado de incêndios, movimentos cuja intensidade tornavam reais os ritmos de uma volúpia que não podia ser contida, uma atração fora de controle, como jamais uma pessoa feito ele, tão sempre sob controle, sob seu controle a xícara, sua mão sob controle, a xícara vibrando sob seu controle, deixou-a sobre a mesa de centro, certo, sob controle.

“Júlio. Tá me ouvindo?”

“Claro. Só estava pensando…”

Talvez estivessem dormindo ainda. Um dia, estariam todos mortos. Outras gerações, outros conflitos. Os mesmos. Todas as gerações um dia estarão mortas.

“Não me leve a mal”, Lea segurando sua mão.

Talvez o desejasse estranhamente, agora que não mais procurava ocultar as pernas sob o robe. Talvez a cumplicidade e uma maneira secreta de compensar as perdas, com a vingança. Ou apenas impressão sua, receando constrangê-la com alguma insinuação que não correspondesse à sinceridade dela. Custava-lhe reconhecer toda a troca, Júlio por Bruno, Lea por Vanda, um torvelinho fantasioso instalando-se por um brevíssimo tempo em sua imaginação: o tempo do mesmo relâmpago com que vislumbrara o casal sob os incêndios, tudo isso criando a irrealidade de um patético retângulo amoroso, amoroso diria, mas essas palavras… Ali estavam as bonitas pernas de Lea, de proporções prontas a qualquer prova, o desafio velado à concretização de um desejo, às expectativas de um artista ou às expectativas masculinas apenas, não mais, numa idade em que se apresentam naturalmente belas. Lea não tencionava coisa alguma, esquecera-se de suas pernas, só isso, por serem tantas vezes as suas próprias pernas. Júlio era quem mantinha abafada a absurda impressão de que talvez ela ainda o desejasse veladamente, ele talvez a desejasse também veladamente, mas baixou os olhos, desfez a mira. Sob controle.

“Obrigado”, sob controle, “por me contar.”

As gerações um dia estarão mortas. E será como se nada houvesse acontecido. Quem não sabe disso? Grande coisa. Que aconteça qualquer coisa, tanto faz. Minha manhã? A brisa, o outono? Ora, as manhãs são todas iguais.

Nomes fictícios? Claro que não. Você já me perguntou isso. Se Vanda é verdadeira? Ora, se estivemos juntos, se dividimos nossa nudez, nosso orgasmo, se eu a vi partindo… Você às vezes é engraçado. Acha que estou inventando. Eu apenas conto. A mentira cabe a você, que me ouve. As imagens são suas, o universo é mais seu, menos meu – se é que me entende. Sobre a colega dela, antes que me esqueça de dizer-lhe: em outra história, Augusto, Lea e eu somos irmãos.

Os últimos dias de agosto

67. Coisas não tão graves – sequência

65. A menos que se instalassem dois sóis – anterior

Guia de leitura

Imagem: Sara Muzira. Açúcar negro (detalhe).

por

Publicado em

Comentários

Comentar