Office in a Small City por Edward Hopper

Coisas não tão graves

Vanda, mais uma pessoa – e seu sonho de si, sua denúncia de fraude.
Pareceu aliviada quando eu lhe disse que não estava magoado, apenas surpreso. Que não a censurava, e talvez fizesse o mesmo se me atraísse outra mulher.

Ela tinha de escolher aquele lugar. Galerias, vitrinas espelhadas, lojas e lanchonetes, tudo o que não inspirava a Júlio mais do que o tédio. Gente em roupas arranjadas, que a televisão chamava descontraídas. Mulheres de meia-idade, que a televisão chamava sempre jovens e bonitas; rapazes insípidos, antiquados, que a televisão chamava bem-sucedidos; garotas em trajes de ginástica, entre elas a mais tagarela e festiva, aquela que não precisa fazer força para ser notada. Ele tinha de estar ali, em meio ao caleidoscópio das aparências, um rumoroso espetáculo de bonecos. Sei que não existo, pensou. Mas posso enxergá-la a um quilômetro de mim, entre todos esses. E encará-la pela última vez

Ela não me pareceu alterada, apenas demonstrava alguma timidez que eu não conhecia. Eu supunha que ela repetiria o que havia dito ao telefone – não sabe o que aconteceu, iria contar tudo mais tarde, nunca nos havíamos prometido nada, não pretendia prejudicar nossa amizade. Vinha me dizer que as pessoas eram livres, frases que havia ensaiado em casa e fluíam premeditadas, quase musicais, que ouvia na telenovela e ilustrava com olhos graves, ar não tão abatido que disfarçasse seu prazer em comportar-se como uma mulher madura. Vanda, mais uma pessoa – e seu sonho de si, sua denúncia de fraude. Pareceu aliviada quando eu lhe disse que não estava magoado, apenas surpreso. Que não a censurava, e talvez fizesse o mesmo se me atraísse outra mulher. Que éramos de fato livres, éramos jovens, e as coisas não tão graves como a televisão queria nos fazer acreditar. Ela chega, não me beija. Olha-me sem sorrir.

Quando saí, fui rudemente acariciado pela aragem cortante da qual me havia esquecido. Era só a proximidade do inverno. Também quase me esquecia de que era Vanda pela última vez. Vi seu rosto no papel amarrotado que não resistia às travessuras do vento (talvez seja uma carta, pensei) e entendi que a natureza revia seus ciclos, continuava expressando furtivamente suas transformações, tendo-me separado dela. Soa exagerado, talvez. No momento, foi o que me ocorreu, gravemente. O tempo recomeçava ali, com um resto de carta ordinária, o inadiável processo dos minutos, horas e dias na roda dentada dos anos, o calendário dos séculos, com suas variações de engrenagens no infinito. Muito bem, não importa. Que venha o inverno.

Vanda agora integrava a mesma inefável dimensão de suas paixões passadas. Nem seu corpo contemporâneo ou sua vida paralelamente real podiam fazer dela mais que uma personagem da memória e do sonho. Assim hoje eram Ana, Dulce, Treze, Cátia: corpos contemporâneos, distantes dele como se não continuassem. Assim era hoje Natália.

Natália dividira com ele uma primeira fase de encantamento entre os cenários de sua cidade. Júlio se lembrava do que os envolvia e ilustrava seus sonhos, desde um comercial de TV até a linguagem de gírias carinhosas que naturalmente não se usava mais. Também não mais se ouvia uma daquelas canções que diziam ser deles. Assim, quando ele descobria uma carta, uma foto, um cartão, sentia como se desentranhasse um fóssil de fases primitivas, cujas metamorfoses teriam servido apenas para trazer a vida até onde agora se encontrava, fóssil do futuro no corpo de outros objetos.

Anos atrás, tive uma impressão semelhante quando certa noite encontrei sobre a escrivaninha a xícara de café que, por esquecimento ou distração, eu não havia tomado pela manhã, quando minha mãe a trouxera ao quarto. As horas transcorridas sem mim, desde quando saíra para o trabalho, tornavam o café outro, agora frio. O que me separava do café ainda quente, se o tempo, afirmam, é uma abstração? O que me separava do seio de minha mãe, de seu calor e cuidado, quando o mundo mal e mal existia para mim? Assim como ao vasto conjunto de seres vivos e mortos chamamos natureza, será o tempo uma tentativa nossa de abarcar toda sorte de fenômenos num conjunto em que se incluem especialmente a vida e a morte? O tempo é a natureza em marcha? Ou tudo são definições, palavras. O que me separa hoje de Natália, do que nos cercava e fazia de nós o que éramos? Como poderia retê-la comigo, sem que estivéssemos ambos perdidos, um para o outro, quanto ao nosso passado? O que separa de mim, de minha pessoa, aquele que por acaso lê estas palavras, estas mesmas palavras, sim, no futuro, quando eu não mais estiver em parte alguma?

Está bem, que seja. Venha o inverno. Só é preciso estar lúcido para vivenciar as solidões. E não podemos impedir que o tempo passe. Parece lúcido? Talvez não haja o que compreender sobre o tempo. Nossa distorcida imaginação não desiste de forjar o que chamamos enigmas, a fim de nos distrair (ou consolar) da intolerável clareza, da fulgurante nitidez das coisas que são. Certo, falei demais sobre Vanda, ela não era uma pessoa especial. Houve outros encontros, diálogos, dias de chuva. Nem tudo vale a pena lembrar, a não ser quando estou sozinho. Ela me deixou, perdeu o encanto por nosso caso, eu nunca fui grande coisa, por minha vez. Perdê-la não foi o pior, claro. É verdade que sofri, mas não muito. Isso apenas agravou minha crise pessoal, com a qual eu não podia romper. Por que mencionei Vanda? Foi bom tê-la conhecido, ela me fez lembrar que a beleza e o prazer ainda existiam – em mim, isto é, para mim pelo menos. Bem, bem. Não vamos ficar a noite toda nisso. Preciso apenas lhe dizer, Augusto, do fundo do que sinto: em outra história, Vanda se interessa por mim, convida-me a conversar, aproxima de meu rosto o seu sorriso. Mãos dadas, talvez. Pés balançando nas águas… Estranho. Não vejo sua nudez. Seu sexo.

Os últimos dias de agosto

68. No tempo (e no templo) das enciclopédias – sequência

66. Uma sombra a caminho – anterior

Guia de leitura

Imagem: Lee Krasner. Sem título. 1971.

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