Office in a Small City por Edward Hopper

A eterna tolice de tentar

A súbita notícia ao fim daquela tarde cinzenta, a tarde de nuvens da qual ele jamais regressaria. Júlio apertou a gola do casaco.
Aquele vento era irmão de chuvas.

Nas escadas, ele lhe voltou. Em meio ao trabalho quase esquecido, o trecho em que soubera registrar sua solidão atravessara as barreiras insólitas do tempo para alcançar Júlio agora. Chegara até ali. Sua obra renovava-se na imaginação apaixonada de mais este cidadão, os acordes de seu adágio ressoando de alguma maneira em outra memória avulsa, outro homem, outro gérmen. Por sorte, aliás, não se lembrava de ter ouvido de Coelho algo sobre o Adagio, com isso não se contaminando com qualquer opinião contra ou a favor, o que tornava sua relação com a peça apenas emocional, espontânea e autêntica, na medida em que ela o atingia como era, música por si só, sem o apoio ou o prejuízo que lhe imporiam as palavras ou, pior, as definições mais precisas. Sairia de lá com sua música, não uma pequena lembrança para quem habitava este século, este lugar, e o levaria pelo hoje das ruas. Albinoni: entre os homens, o legado de um homem. Quando saísse, quando estivesse entre outros que… De pé, nos últimos degraus. Júlio se deteve, cobriu o rosto com as mãos. Queria crer que não fossem soluços, ou apenas isso. Podia ver o canto de página que servira a Albinoni, em sua parcela de eternidade, os tipos que compunham seu nome, prenome e sobrenome, sua cidade, entre parênteses seu nascimento e sua morte. Júlio, sua própria lápide. A certeza de que o último arranjo de algarismos existia desde sempre, na sequência lógica dos calendários. E o esperava? Júlio é que marchava até ele? Ficava e o encontrava? Seguia como se o ignorasse, pudesse com isso escapar-lhe? Afligia-lhe o pouco tempo de que dispunha, a síntese patética de cada passagem, nascimento e morte, números entre parênteses. Soluços. Sozinho, e era apenas um homem. Últimos degraus. Ainda de pé. A vida, o estar presente a situações e lugares, com estas ou aquelas pessoas, era também seguir em frente, ainda que tudo se repetisse. Os soluços diminuíram. Júlio enxugou o rosto na manga da camisa, saiu a procurar, mesmo contra um fundo de calendários, seu caminho pela cidade.

Quase não pude escrever nessa noite. Aquilo já se fazia um sintoma de que eu não resistiria a reescrever todo o diário no futuro. À noite, após uma dessas viagens delirantes pela enciclopédia, a primeira grandeza que me perpassava a mente era isto: a eternidade. Ser eterno. Valia a pena tentar. Mais tarde, às fronteiras do sono, que também são mágicas, caía essa mesma primeira grandeza a uma escala bastante secundária: a eternidade. Ser eterno. A estranha tolice de tentá-lo.

Tudo o que Bruno pudesse conceber sobre a eternidade e o tempo, que por sinal são a mesma coisa, se é que alguma vez lhe houvesse ocorrido imaginá-lo em qualquer nível de seriedade, terminava com a súbita notícia ao fim daquela tarde cinzenta, a tarde de nuvens da qual ele jamais regressaria. Júlio apertou a gola do casaco. Aquele vento era irmão de chuvas.

Os últimos dias de agosto

70. Imagens recentes do funeral de Bruno – sequência

68. No tempo (e no templo) das enciclopédias – anterior

Guia de leitura

Imagem: Georges Seraut. Homem num parapeito. 1881.

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