Office in a Small City por Edward Hopper

Imagens recentes do funeral de Bruno

Umas flores, lançadas com suavidade: o esquife descia ao som das últimas preces. Júlio não rezava. Não fingia.
Aceitava as condições. Como não?

Bruno. Vinte e cinco anos. O tempo não existe. E não existe mais para ele.

Não os acidentes, Augusto. Não me incomodam os assassinatos, as tragédias coletivas. Mas a vertigem, meu caro, que nos deita, um a um, para sempre, sem chances de qualquer evasão. Estamos aqui. Não estaremos mais. Um dia, não encontraremos nenhum dos que uma vez conhecemos e que de certa forma nos procuraram. O mesmo corvo que repete o agourento nunca-mais sobre o busto de Minerva inspira-me que nenhum de nós se encontrará novamente e que isso é natural. Não, não se torture assim. Quando isso acontecer, é porque não precisaremos mais uns dos outros. No fundo, sempre fomos sozinhos. E estaremos aqui enquanto for preciso, nada mais.

MOTO: SUA MELHOR MANEIRA DE CHEGAR.

Letras gigantescas. Cartaz afixado no paredão cinzento, lateral do viaduto. Vá agora mesmo ao seu revendedor autorizado conhecer nossos novos modelos… Letras menores. Foto de um casal sobre certa moto reluzente. E o fim da mensagem: cabelos ao vento, rostos distintos mostrando ao mundo que a vida era bela e todos podiam ser belos e felizes.

Outro vento hostil fustigando a todos. Os cidadãos apertavam os agasalhos, amarrotando-os contra o peito. Grandes deslocamentos de nuvens davam uma amostra da dimensão das próximas chuvas. A temperatura cairia ainda mais. Júlio desviou os olhos do cartaz, não suportava a visão dos jovens sorridentes. Jovem também era, por que tão avesso aos valores de sua geração? Uma geração qualquer, aliás. O rapaz e a garota escolhidos para a foto deviam estar vivos em alguma parte da metrópole. Talvez esperançosos. Talvez deprimidos. Não sabiam, claro, que não era preciso existir. Um dia, estariam sepultados em cidades diferentes, esquecidos como o fotógrafo, o publicitário, o anunciante, todos os que uma vez forjaram aquele encontro em cores, cabelos ao vento, rostos felizes. E sua maneira de chegar. Naturalmente. Júlio voltando-se aos restos do alegre cartaz, que logo seriam destroçados ainda mais, pelas próximas chuvas. Toda a vida, como a conheciam os homens, baseava-se num confuso alicerce de ilusões, propensa a desmoronar ao mais leve sopro da consciência, aos que tinham a coragem de exercê-la, certamente, ao mais leve sopro da razão. Aí estavam o inverno e o vento. Dispensando inclusive qualquer esforço das tais consciências.

As imagens recentes do funeral de Bruno, sua cidade. Familiares acompanhando o cortejo. A mãe não pudera deixar a clínica, onde a sedaram. O pai, outro belo rosto, sobrevivente à cega tentativa de recriar a vida à sua imagem e semelhança, sua réplica do mesmo sexo, sob as condições da herança e a tirania das leis naturais. O sepultamento, sob chuva fina. Só uma coincidência, claro: Júlio não queria admitir a si mesmo que via beleza em todos os momentos. Pessoas curvadas, cabisbaixas e graves. Mãos dadas ou caminhando abraçadas entre si. Uma solenidade imposta pela natureza, não pela convenção. Aquelas que erguiam o rosto pareciam tranquilas. O fim traz sempre um alívio. Umas flores, lançadas com suavidade: o esquife descia ao som das últimas preces. Júlio não rezava. Não fingia. Aceitava as condições. Como não?

Cigarro contra as correntes de vento, difícil acendê-lo. Organismos microscópicos tratariam de reciclar a beleza, os rostos, os Brunos, por fim cedendo a uma permanência mais prolongada o conjunto simétrico de ossos sem resposta – e por que trariam alguma resposta? Por que imaginar os ossos, o que já não significava mais nada? Bastava a ausência, mas, outra vez, por que insistir nisso? Já eram perguntas demais, e por nada. Também recentemente, a notícia sobre um pouco conhecido colega do andar superior, pronto às provas da decomposição, num dia como qualquer outro. Uma ficha arquivada para sempre. O nome excluído do quadro sobre o relógio de ponto. “Ele não está mais neste mundo”, o encarregado, com um suspiro, enquanto separava o cartão. “Vamos sentir falta dele.” Será? Os que resistiam não costumavam questionar-se quanto a ser aquele seu último ano sobre o mundo, sobre as cidades. Ora, por que refletir ainda sobre algo que apenas, e sempre, transcorria, o que podia haver nisso? O vento, em cheio, avermelhava a ponta do cigarro. Melhor apressar-se. Logo começaria a chover, mas que tempo! 

Os últimos dias de agosto

71. Nenhum gesto, nenhum grito – sequência

69. A eterna tolice de tentar – anterior

Guia de leitura

Imagem: Tony Renner. Negro No. 3 de Motherwell. 2010.

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