Office in a Small City por Edward Hopper

O que fez com ela? – com o corpo dela?

Ela sente que uma única palavra pode quebrar o encanto.
Pode estilhaçar a sequência do que vinha sendo exposto tão espontaneamente.

“Quando lembro de outras namoradinhas que eu tive, quando penso na Regina e como era divertido ficar com ela no carro… Na Júnia, com aquele jeitinho dela de intelectual ativista, quando lembro de como eu me incomodava com pouco… Só o dilema de dormir ou não no apartamento dela me fazia acordar com dor de cabeça, por ter dormido lá mesmo ou por ter acordado em casa, arrependido. Penso na Cris e nos periquitos australianos dela, aquelas músicas gostosas que a gente ficava ouvindo, minhas pobres preocupações com a ditadura militar, com a injustiça, do jeito que eu era mal informado… Nossa! Tudo isso eram coisinhas à toa, aguinha com açúcar, preocupação de criança. Problema mesmo, de verdade, era o que eu tinha agora: uma mulher morta comigo. Eu, girando de carro pela cidade, com uma garota morta do meu lado – morta com a minha arma! O dia seguinte poderia ser o começo de um inferno para mim. E foi, em parte. Sorte que me livrei logo daqueles depoimentos todos. Sorte que os peritos concluíram logo o tal laudo e aquela coisa toda. Mas isso eu só soube depois, não podia adivinhar o futuro. As coisas sempre acontecem. Naquele momento, naquela noite, passeando com ela (com o corpo dela), só podia imaginar o pior.”

“Fico pensando…”, Liana em um tom disfarçadamente neutro. “Como tudo foi tão rápido. Tudo de uma vez só. Você com ela, tão pouco tempo, depois o tiro… Não aconteceu nada nesse meio tempo que você acha que ela… que fez ela…”

“Pode ser o que eu já contei: de ela ter ficado irritada comigo. Mas daí a se suicidar, não é mesmo? Olha, ao longo da minha vida, muito, mas muito mais gente já ficou irritada comigo. Mas nunca…”

“Sei, sei. Não é isso. Não é nada disso. Vê se lembra de alguma coisa. Tenta lembrar.”

Danilo pensa. Olha para baixo. Para cima.

“Não. Mais nada. Não lembro de nada especial, não mesmo. Nada importante nesse caso. Só que eu perdi a vergonha e me declarei a ela. Hoje, eu mesmo acho isso tudo ridículo.”

“Sei.”

“E uma coisa que me faz pensar, sempre que lembro, é que…”

“O quê?”

“Quando as mulheres se despediam de mim, até mesmo no fim de um namoro, diziam: ‘Se cuida.’, ‘Tchau, querido, se cuida.’, ‘Se cuida, hein?’. Assim. Quase do mesmo jeito. Sem uma ter conhecido a outra. Você entende? Sem uma saber da outra. Não é interessante? No fundo, isso me assustava um pouco. Soava como um alerta. Parecia que eu era uma espécie de inocente propenso a confusões, um atrativo de desastres.” Volta-se para Liana. “Você também me disse isso, lembra? Naquele dia. A primeira vez que eu te beijei. Lembra?”

“É… É. Todo mundo diz isso.”

“Mas aposto que nenhuma delas pensou: ‘Se cuida, hein? Um dia você vai acabar com uma garota morta do seu lado.’. Não. Não. A previsão das pessoas não chega a tanto. Não deriva a tanto. Mesmo sendo eu o que eu era, como eu era.”

“Pois é. Ninguém sabe. Mesmo em se tratando de você, não é mesmo?”

“Então. No fundo, eu tenho um pouco de pena de mim mesmo, sabe? E também consigo rir disso tudo. Mas, quando eu decidi me declarar a ela, com toda a coragem que pude acumular, vamos dizer assim, então eu… É que depois de ter rolado com ela na cama, de ter possuído ela como eu quis, ou como ela também quis, não sei, eu me sentia mais confiante, mais capaz, mais… mais…”

“Mais macho.”

“Isso! Mais macho.”

Liana olha a parede, quieta. Ele continua contando tudo do mesmo jeito. Homens.

“E por isso eu me sentia forte, me sentia capaz…”

“Já disse isso.”

“E então… Eu me inclinei na cama ao lado dela, apoiado num cotovelo. Ela estava deitada de costas, se recuperando, agora tranquila e respirando normalmente. Os cabelos bem despenteados saindo para os lados do travesseiro torto e do lençol. Nenhum de nós estava deitado ao longo da cama. A gente estava de qualquer jeito, meio na diagonal, eu lembro, e eu fiquei olhando ela de frente e sorrindo um pouco, e eu disse: ‘Ana. Como é bom te ver. Ana Lúcia… Você é linda. Você é especialmente linda, sabe? E sabe também o que eu quero te dizer? Eu faço qualquer coisa pra você ficar comigo. Quero ficar com você o resto da minha vida. Ouviu? Fica comigo. Eu sei que posso te fazer feliz, eu tenho certeza, Ana. Eu te amo.’.”

Liana suspira, entediada. É uma mulher inteligente, não tem paciência para falas de telenoveletas românticas.

“Ela sorriu aquele sorriso arrasador, magnífico, que ela tinha. Mas fechou o sorriso rapidamente, mantendo-o de boca fechada, como se não quisesse compactuar com as minhas declarações, como se não quisesse me incentivar ou algo assim, pelo menos foi como eu senti. Ela ergueu um braço só, preguiçosa, ficou afagando meus cabelos. ‘Você tá sonhando, lindo. Não leva isso tão a sério não.’ ‘Não tem importância, Ana. Me deixa sonhar com isso. Me deixa sonhar com você. Com você comigo.’ Ela sorriu e parou de sorrir de novo. ‘Deixa isso, sabe? Isso passa. Foi muito bom aqui hoje. Você foi…’ Ela demorou a dizer. Não achava um adjetivo muito bom pra mim. Talvez estivesse com dificuldade de mentir. Deu tempo de passar duas mechas de cabelos meus pra trás da orelha antes de continuar. ‘Foi um ótimo companheiro.’ Isso me entristeceu um pouco. Pra falar a verdade, no fundo me entristeceu muito. Companheiro? Que coisa mais… amiga. Por que não um ótimo amante?”

“Porque, provavelmente, você não…”

“Por que não, por exemplo: ‘Você me surpreendeu, foi uma surpresa para mim.’? Pelo menos. No mínimo. Bom, de qualquer forma, eu estava absolutamente apaixonado. Alucinado. Encantado, magnetizado. Chegava a duvidar que aquilo tudo fosse verdade mesmo. Brinquei com ela dizendo que estava pensando em me beliscar pra saber se não estava sonhando. ‘Mas, em vez disso’, eu disse a ela, ‘acho que vou beliscar você.’ Belisquei a bundinha gostosa dela. ‘Para!’, ela riu. Me deu um tapa como pôde. Era maravilhoso demais.”

Liana entediada. Mais suspiros.

“Eu chegava a duvidar que tinha passado mais de uma hora com ela na cama…”

“Mais de uma hora?”

“Mais de uma hora. É. Isso mesmo. Como não? Disso eu me lembro bem. Ei, ei. Não estou querendo dizer que nós ficamos o tempo todo… você sabe. Já fazia mais de uma hora que a gente estava ali, brincando e… tudo o mais. Era difícil acreditar que eu tinha conseguido levar a Ana Lúcia comigo. Aquilo era tudo que um homem podia desejar, tudo.”

“Aquilo? Ela?”

“Ela. É. Tenho certeza de que aquilo era o limite da sensualidade, da delícia, do prazer e, afinal de contas, da felicidade. Isso era, sem nenhuma dúvida, a felicidade. Como não? O que é a felicidade então?”

“Isso está me cansando, sabe? Me cansando…” Toca a testa com uns dedos, inclina sutilmente a cabeça. “Eu queria saber o que você fez…”

“Se eu chegava a duvidar que aquele momento era real, imagine o que eu pensei logo depois, quando ela… Bom. Mas, antes disso, eu continuei insistindo, todo sensível, caído de amor, cheio de… de…. Sem noção de quanto a incomodava. Até que ela se sentou, foi saindo da cama, dizendo: ‘Ai, chega disso, querido, preciso de um banho. Olha, não leva nada disso a sério, já disse. Depois a gente conversa, tá bom?’. Eu me levantei também. ‘Não, Ana. Depois não. É agora que nós estamos juntos. É agora que nós estamos sozinhos. Que nós dois estamos… tão bem um com o outro.’ ‘Me larga, que isso?!’ Só então eu percebi que estava segurando o braço dela com força. Eu não tinha percebido mesmo. Soltei, envergonhado. Ficou uma marca cor-de-rosa, até eu me surpreendi. Apertei muito mesmo. Como pode, não é? Coisas que a gente nem percebe na hora. Mas, só por causa disso, ela se irritou. Só por causa disso. E voltou outra vez àquele temperamento instável dela, propensa a algum surto, algum gesto imprevisto, sei lá. ‘Ana, não fala assim comigo, minha linda. Eu te amo, você sabe disso.’ ‘Olha, já falei, chega dessa conversa.’ ‘Que conversa? Então não posso nem dizer que…’ ‘Cansou, sabia? Não quero ficar ouvindo… Ai, me solta!’ ‘Não solto’, disse eu sorrindo, pensando que ela fosse entender a brincadeira. ‘Você é minha prisioneira agora, eu te sequestrei. Lembra que eu estou armado, hein?’ Mas, olha, isso a perturbou de repente. Eu senti um arrepio de medo, vendo a cara dela. Seus olhos pareciam, não me pergunte como, mais afastados um do outro, ao mesmo tempo em que se fazia quase vesga, uns olhos de um marrom atônito, a um tempo fogosos e escurecidos, brilhantes e opacos, vibrando muito sutilmente, uma estranha criatura voluntariosa despertava nela e se apossava de sua beleza. Ela não entrou na brincadeira, e deu um grito. Um grito só. Mas daqueles. Não sei como ninguém ouviu. Não sei mesmo.”

O rosto de Liana parece duro como o de uma estátua. Ela move o mínimo os lábios para dizer algo.

“Alguém pode ter ouvido. E daí? Quem iria interferir?”

“É. Pode ser. Mas o que mais me feriu, me feriu mesmo, de verdade, foi quando ela deu um puxão no braço, se soltou de mim, pegou uma roupa qualquer e disse: ‘Vam’bora, não quero mais ficar aqui, cansou! E para de me chatear, não tô brincando não!’ Ela parecia brava mesmo. Quando lembro disso, dou razão a ela. Eu era de fato um exagerado, um idiota apaixonado, ridículo, insistente. Agia da pior maneira possível, algo que só podia desagradar a uma mulher. Enfim, eu sempre punha tudo a perder, com o meu entusiasmo, com a minha falta de autocrítica, minha precipitação. Por que não deixei um pouco pra outro dia? Por que não dei tempo ao tempo, como dizem os caretas, como dizia minha avó apocalíptica? Poderia ter falado com ela em outro momento. Na escola, em outro lugar. Talvez ela quisesse ficar comigo de novo. De outro jeito. Depois de mais coisas. Talvez isso criasse uma convivência, era sinceramente o que eu queria. Queria namorar, queria me casar com ela. Ao contrário daqueles babacas que só queriam se aproveitar dela.”

Liana leva a mão à testa. Não parece estar bem.

“Ironicamente, foi comigo que ela se estressou. Que vida. Eu disse a ela que ela poderia ser a minha eterna namorada, que ela era tudo o que um homem como eu poderia desejar. Ela disse: ‘Vai se foder!’. Assim. Do nada. Eu, muito chateado com isso, continuei ouvindo. ‘Já não fez o que queria não?’ ‘Não, Ana, não fala assim comigo. Minha linda… Não era o que eu queria não…’ ‘Ah, não!’, ela falou pegando a calcinha, que estava atravessada no encosto de uma cadeira. ‘É só o que vocês querem, sempre é. Olha, eu já disse que cansou, tô por aqui com isso, quero ir embora. Se não, vai ficar pior, sabia?’ ‘Pior? Como pior? Não, olha, escuta…’, eu insistia, sem desistir. Persistente. Desajeitado. Um paquiderme. ‘Pensa que você é o quê?’, ela falou, dessa vez me olhando de frente, meio que me fuzilando com aqueles olhos cortantes. ‘Pensa que é o quê? Meu dono, por acaso? Semana que vem tenho outro encontro marcado, sabe com quem?’ Não, eu não queria ouvir. Claro que não. Não queria que ela falasse. Fiz um gesto pra ela parar, disse: ‘Tudo bem, tudo bem, não falo mais nada. Não quero saber.’. Ela vestiu a calcinha bem rápido, um pé e outro, subiu ela pelas pernas… – nossa, que prática!, eu pensei. ‘Não quero saber. Vamos embora mesmo’, eu falei quase engasgado, quase chorando de… de…”

“De ciúme. De ódio.”

“De ódio ou de… tristeza, não sei. Um pouco dos dois. Vi que ela estava pegando as roupas, admirei seu corpo pela última vez, seus peitinhos, suas pernas, até mesmo seus pés, ela tinha uns pés muito bonitos, sabe? Estava linda e emburrada, talvez furiosa comigo. Aquilo me magoou, fiquei meio confuso com meus sentimentos. Linda e irada. De mal de mim. Me evitando, depois daquilo tudo. Fui pegando minhas coisas também, amargurado, arrasado com a atitude dela, com ela, fui juntando minhas roupas, ela esbarrou em mim sem querer, me olhou por um instante, um olhar cintilante e incisivo, parecia irritada e com nojo de mim. Com nojo de mim! Peguei a minha carteira em cima do frigobar, o meu relógio digital da Texas Instruments, a minha arma, a minha Walther PPK…”

“Danilo, espera aí…”, Liana detém um gesto no ar. “Não, deixa. Não, nada. Deixa. Continua.”

“Peguei a minha arma, senti seu peso característico, tão familiar pra mim, fiquei olhando sua cor metálica, pensando que, se não fosse por ela, por essa arma, talvez não tivesse conseguido atrair a minha amada, quero dizer, a minha… a minha… Nem sei mais. Nem sabia mais o que ela era minha. Nesse momento, a Ana esbarrou de novo em mim, sem querer, me olhou de novo daquele jeito hostil, furioso, com nojo, como se quisesse que eu saísse logo do caminho, e disse, rápida: ‘Palhaço! Tá pensando que eu sou o quê?’. Com raiva. Com muita raiva de mim. Eu não podia suportar aquilo, não podia mesmo.”

Liana não o interrompe, mas agora ele próprio o faz. Faltava pouco. Faltava tão pouco… Ela sente que uma única palavra pode quebrar o encanto, estilhaçar a sequência do que vinha sendo exposto tão espontaneamente. Por isso, conserva o silêncio. Os olhos num movimento mínimo, desejando com toda força que ele continue. Continue, querido. Estou ouvindo, com toda vontade. Estamos a um instante do tiro, à beira do abismo, em face da esfinge, ao alcance do estrondo, entrevendo a fenda, premeditando o relâmpago, antecipando um raio. Mais um pouco. Só mais um pouco, Danilo, vamos…

“Eu não podia…”, ele diz. E para de novo.

Ela quase visualiza o braço dele se erguendo, num gesto brusco, posicionando-se, quase ouve o tiro deslocando o ar, abalando as paredes e toda a estrutura do predinho antigo. Abalando o momento e o dia. Abalando para sempre a memória dele. Abalando levemente, mas de maneira incômoda, para Liana, sua própria visão sobre ele e (o menos pior, já que o passado não existe) pondo fim à vida complicada e controversa da distante, da irrecuperável, da remota entidade chamada Ana Lúcia. Por isso, Liana mantém sua estratégia de silêncio. Ou de falar o menos possível.

“Tudo bem. Até aí, acho que… Tudo bem. Só quero saber, agora, o que você fez com o corpo. Me diz. O que fez com ela, Danilo? Com o corpo dela.”

Marcas de gentis predadores

39. Chora, menino – sequência

37. Sem adeus – anterior

Guia de leitura

Imagem: Henry Asencio. Santuário.

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Comentários

2 respostas para “O que fez com ela? – com o corpo dela?”

  1. Avatar de Perce Polegatto

    Olá, Luiz. Que bom saber que está gostando.
    Na verdade, Liana é a que está ouvindo a história, e suspeita que Danilo tenha assassinado Ana Lúcia, muitos anos atrás, simulando um suicídio, e ficado impune.
    A sequência está nestes capítulos.

    Às voltas pelas ruas do centro: Ana Lúcia jaz em movimento
    https://www.percepolegatto.com.br/2013/01/17/as-voltas-pelas-ruas-do-centro-ana-lucia-jaz-em-movimento/

    Deixando a fortaleza
    https://www.percepolegatto.com.br/2013/01/26/deixando-a-fortaleza/

    A partir desse capítulo, citado acima, basta ler, no final dos posts, o título do próximo e clicar nele. É que esse romance usa flashbacks para sustentar o suspense, por isso nem sempre essa ação entre Danilo e Liana prossegue imediatamente.
    Também no final de todos os posts você encontra um item chamado “Guia de leitura”. Clicando nele, você tem todos os capítulos do romance, como um índice.
    Abraços, escreva sempre, é um prazer.

  2. Avatar de Luiz

    Olá Perce, bacana o texto, tenho lido muitas de suas publicações. Quanta criatividade hein…
    Parabéns!

    E o que ele fez com a Liana, tem a continuação?

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