Office in a Small City por Edward Hopper

O diário de um morto. 1

Sei que os lugares existem independentemente de nós. Mas quando revejo um pátio, um ladrilho trincado, um tanque ou muro umedecido, sinto que os reinvento através de meus olhos, através do que me sinto sendo hoje.
Ser o que sou hoje é a única maneira de revê-los.

Página 27. Velha casa, sala de espera, chuva.

Sinto uma grande necessidade de registrar neste diário: a primeira casa onde morei. Detive-me diante da mureta mal pintada, de camadas sobrepostas, de cujo parapeito eu costumava saltar ao chão, a fim de testar minha coragem. Pousei a mão sobre ela, avaliando sua pouca altura, com dificuldade revia a criança audaciosa e aceitava o fato de que era o mesmo lugar. Sei que os lugares existem independentemente de nós. Mas quando revejo um pátio, um ladrilho trincado, um tanque ou muro umedecido, sinto que os reinvento através de meus olhos, através do que me sinto sendo hoje. Ser o que sou hoje é a única maneira de revê-los. Reencontrá-los, redescobri-los, nada disso seria o mesmo no passado nem poderia ser observado por outrem. Os lugares não existem se não nos incomodam. Muitas vezes, quando alguém depara com um cenário que lhe tenha servido à infância, lembra com uma espécie de felicidade orgulhosa: “Eu subia nessa árvore.”. Ou nadava em certo rio. Brincava em tal calçada. Não nos ocorreria qualquer entusiasmo se intuíssemos que aí, inserida nesse intervalo subitamente revelado, mora a pista para o que não compreendemos e que certamente oculta alguma verdade. Quando voltei a essa casa e a essa mureta, tornei real esse intervalo, podia medi-lo em anos. Mas, se não me ocorresse passar por ali, ou se passasse no ano seguinte, não haveria, da mesma maneira, a mesma distância entre o menino e eu? Ou tal distância é apenas um capricho de minha imaginação, que se recusa a verificar que o tempo não existe? Na casa ao lado, o cartaz do amolador: CHAVES NA HORA. Tive medo de ficar mais tempo ali.

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Encontro-me em uma sala de espera onde não há relógio. Posso sentir que o tempo passa, mesmo desprezando os minutos decorridos, adivinhados pelo hábito da espera. Mas se uma pessoa abre uma revista ou acende um cigarro, determina com seu gesto que o tempo até ali já transcorreu, como se, com isso, fechasse uma porta. Cada gesto fecha uma porta. Uma porta de pedra. Ninguém se move, e mesmo assim as portas continuam se fechando, uma após outra, pois a imobilidade não detém o curso dessa grandeza implacável. Ou todas as portas são imaginárias. Ou desde sempre estiveram fechadas por serem o que são, vinculadas ao tempo.

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Chove sobre a cidade dos homens. Se essa água nos servisse às próprias impurezas, à lama de que somos feitos, talvez consolidasse nosso verdadeiro batismo. Mas não. Deram nomes às coisas, não cura ao mal de ser gente. Aí está ela outra vez, a aranha da morte;, aqui estou eu a espreitá-la. Ocorrem-me a ordem dos elementos essenciais, os ciclos da natureza, o falso deus dos miseráveis, suas graves ironias, o momento de ficar nu, a solidão das pequenas descobertas e o que se realiza à meia-noite do mundo. Lapsos de crença em minha vida imediata. E cada dia em minha aventura.

Os últimos dias de agosto

74. O diário de um morto 2. Página 55. Local de nascimento, questões de consciência, o alpinista – sequência

72. O castigo de escolher – anterior

Guia de leitura

Imagem: Liu Mao Shan. Paisagem urbana 12.

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