Office in a Small City por Edward Hopper

A Noite das Vitaminas

As venezianas denunciavam vagamente a altura do sol. Outra manhã.
Mas não foi isso que o moveu à irresistível lassidão, o que lhe passou outra amostra da morte sob o peso de um sono extraordinariamente profundo.

Jackson Pollock. Número 1. 1950A água corria há algum tempo.

Umafr est adec onsci ênci aof erec ia-l he out ravezu ma ponte eum inst intoq ualq uer lheor den avaq uea atrav es sas se. Pensavac onfusamente quel hep arecia in crívelt er chegado ao banheiro, tendoa ntes rolado da cama ao chão, após um jato de vômito, arrastando-se enquanto tentava reerguer-se e tendo caído duas vezes duas vezes ao aventurar-se nessa tarefa, no momento sobre-humana, até ver finalmente a mão escalando como uma aranha esquálida os infinitos azulejos para girar a torneira do chuveiro frio.

Caído sob a catarata contínua, roupas encharcadas retendo mais frio junto à pele. A dor. Um monstro o mordia por dentro. Com algum esforço, enfiou dois dedos na garganta, provocando outra expulsão de líquidos, restos de veneno e fios de sangue. Imagens não se firmavam. Azulejos movendo-se entre a assimetria do delírio, paredes distorcidas por ondulações invisíveis. “Não sou eu… Não sou ninguém…”, de novo o assombravam as palavras, pobres (e nobres) sintomas de reorganização. “Um amontoado de náusea e angústia…” No mais, tornava-se difícil permanecer inerte em meio ao ciclone orgânico, passado o pesadelo nada transcendente de ter morrido e não morrer. Monstros no estômago. Cérebro em pedaços. Salvo precariamente. Poupado para o futuro, para outros dias. Para um dia, de fato. O dia, por fim. O verdadeiro dia futuro.

Engoliu todo o leite que encontrou na geladeira. Ficou sentado ali, junto à parede, geladeira aberta. Pareceu-lhe ter estado assim um longo tempo. A geladeira fazia escorrer tudo o que pudesse, fazendo-o ainda mais confuso quanto ao decorrer do tempo, pois parecia tê-la aberto há pouco, mas ela agia como se estivesse morta há muito, sinais de permanência (ou impermanência, existe isso?) num estado de abandono, porque as coisas derretiam, e as leis da física, até onde se sabe, e quanto tempo afinal quanto tempo estivera assim, aberta, abandonada, em meio à simetria da civilização, que aconselhava tecnicamente, sabiamente, necessariamente, que entidades como ela não poderiam ficar nesse estado, expostas em sua intimidade por mais de uns poucos segundos e… Tentou comer qualquer coisa que se oferecia à sua visão e ao seu tato, vomitou outra vez. Arrastou-se sem poder ver muito à frente, as imagens agora mais embaralhadas do que antes. Livrou-se custosamente das roupas molhadas quando entendeu que já se encontrava em seu quarto, cama girando à altura da cabeça. Caía por fim entre os cobertores, inalando aromas remanescentes de seu vômito. As venezianas denunciavam vagamente a altura do sol. Outra manhã. Mas não foi isso que o moveu à irresistível lassidão, o que lhe passou outra amostra da morte sob o peso de um sono extraordinariamente profundo.

Um monstro o mordia por dentro, que poético. Cérebro em pedaços. Na verdade não é possível descrever o que se passa numa situação dessas, no limiar de uma suposta morte trágica, mas que breve, muito breve, acaba por revelar-se uma mortezinha perfeitamente contornável, para evitar-se dizer uma morte de brinquedo.

Os últimos dias de agosto

80. O que restou de sua grande e última decisão – sequência

78. O diário de um morto 6. Página 113. Cidades em ruínas, poetas mortos, tentativa obstinada – anterior

Guia de leitura

Imagem: Jackson Pollock. Número 1. 1950.

por

Publicado em

Comentários

Comentar