Office in a Small City por Edward Hopper

Senhores de tudo (e agora abençoados)

E tudo se passa com tal naturalidade que nem mesmo os poetas se incomodam mais.
E fazem versos sobre a nudez dos que amam, a sensualidade dos corpos, a solidão da alma e o antigo fato de não saberem quem são.

Michael Alford. Os poderes da TerraOs bens da Terra, maiúscula mesmo, que é todo o planeta, e até agora o planeta possível, são divididos entre os que têm o poder de matar, pode-se dizer de também destruir, e ramifica-se até a Leôncio & Barradas Advocacia Ltda., microcósmica amostra de tal poder e outra prova inegável de que os desonestos e os bem-sucedidos são irmãos. Não só isso: eu finalmente compreendia que as relações do mundo não eram tão casuais, que homens como eles precisavam da desgraça alheia para crescer, leia-se enriquecer, por isso marchavam de mãos dadas os poderes públicos, os poderes privados e as religiões, que de certa forma são um pouco dos dois, para que se alimentassem esses homens das necessidades dos pobres, como os fungos, invisíveis, se nutrem da podridão. Só o tempo os conterá em sua cela, onde desde sempre estiveram, sem saber, confundidos. Porém, enquanto ainda não chega o futuro, tudo se passa com tal naturalidade que nem mesmo os poetas se incomodam mais. E fazem versos sobre a nudez das criaturas que amam, a sensualidade dos corpos, a solidão da alma e o antigo fato de não saberem quem são.

Confirmando a versão dos boateiros de que o doutor Aguiar houvesse sido entrevistado com fins publicitários, eis que passou a correr a notícia de que a Leôncio & Barradas Advocacia Ltda. vinha atravessando um período de dificuldades financeiras, e eis que boa parte dos escravos de fato acreditou nisso, e eis que uma minúscula percentagem, da qual eu já fazia parte, descreu, e eis portanto que o Heitor Expedito foi incumbido de providenciar um padre para abençoar o local e as criaturas que ali viviam, que éramos nós, assim dizendo, corpo e alma da empresa, e eis que o Heitor Expedito, por grande esforço e empenho que dedicasse ao cumprimento de tal missão, não havia ainda encontrado um só representante de Deus para o dia marcado, o dia seguinte, que era quando se realizaria o ato, conforme ordens e prioridades que a urgência exigia, pois estavam os religiosos todos com a agenda repleta, e assim foi que se arranjou, à falta de outros humanos recursos, um diácono.

“Não vai adiantar nada”, comentou Clemente da Trindade, que era muito religioso. Para ele, diácono não valia padre.

Para mim, nem a ressurreição do ex-presidente serviria a um caso desses, de ordem econômica e financeira, resultado talvez, se é que aquilo tudo fosse mesmo fato, da má administração nesta e noutras inúmeras empresas desse gênero, que na verdade são só a fachada de negócios escusos e mil vezes mais fraudulentos, como o grande imbecil que eu era começava muito lentamente a perceber, e buscavam as bênçãos para continuar e continuar progredindo, leia-se, novamente, enriquecendo, só eu não acreditava mais nisso, nisso, eu quero dizer, se bem me faço explicar, mesmo porque um deus que os protegesse ainda mais, a esses negócios sinistros e a esses homens cínicos, não mereceria, de jeito nenhum, o meu respeito.

Eis que lá foi o diácono, e eis que alguns pegaram a beijar-lhe a mão, a começar pelo Agenor das caretas, depois o escravo dos nomes obscenos, depois aquela estagiária enjoadinha e sacaninha, o que o homem aceitou com humildade, pois o que contava era a intenção, e já que ele representava Deus…

“Eu, hein? Jesus me salve.”

Clemente da Trindade não se mostrava convencido. Eu não o vira sorrir uma única vez, ele que observava de longe o diácono, suspeitando inclusive da orientação sexual deste, vendo-o como a uma espécie de rival, inconformado com a passividade da maioria, que se contentava com bem pouco e era em tal nível ignorante a ponto de não distinguir um do outro, padre e diácono, que a qualquer um que lhe servisse a estola lá estaria o sujeito de mãos juntas. Clemente sussurrava que, se assim fosse, ele próprio folhearia o livrinho e pegaria a rezar uns credos, para o bem do escritório.

Contudo, o diácono era também um profissional, e aos atos procedeu e administrou com a mesma exação e solenidade características de um padre, a quem nada ficava devendo perante os olhos dos que participavam e criam. Algumas colegas persignavam-se por sua própria conta, independente do ritmo e do andamento do ato. Heitor Expedito olhava para baixo, braços cruzados e uma das mãos no queixo, como se, no instante seguinte, fosse adentrar alguma meditação profunda, coisa que já havia feito quando de nossa última reunião geral, em que se havia anunciado a má situação da Leôncio & Barradas Advocacia Ltda., o mesmo gesto, entenda-se, e não que ele tivesse caído em transe daquela vez. O religioso abençoou a todos os presentes, assim como aos que se encontravam ausentes, em férias ou afastados sob licença médica, não se esquecendo de atentar a outros detalhes. Em dado momento, molhou-nos com respingos de água, e, justiça seja feita, foi breve num discurso em que nos garantia a ajuda do Deus Protetor para tempos de melhor aventurança, o que, no momento, pareceu-nos acima de qualquer dúvida e mesmo bem convincente. Também, com um padrinho desses…

Eis, portanto, que nem no dia seguinte, nem na semana seguinte, nem nos meses que se seguiram ou em qualquer outro período distinto, percebeu-se qualquer alteração na rotina de patifarias e embustes da Leôncio & Barradas Advocacia Ltda., e quem sabe a bênção tenha mesmo surtido algum efeito a médio e a longo prazo, quiçá duradouro – caso contrário, poderiam estar nossos administradores sendo detidos por alguma denúncia ou, no mínimo, indiciados. Mas esses que se movimentam no plano da corrupção intocável, que administram privilégios e zombam dos pequenos delinquentes, eis que ainda obtêm proteção divina, creiam todos os que quiserem. Mas o Estado e a Igreja, mas a Lei e a Ordem, mas esses homens…

57. Sinais claros de estados obscuros – sequência

55. O otimismo dos honestos – anterior

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Imagem: Michael Alford. Os poderes da Terra.

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