Office in a Small City por Edward Hopper

O que restou de sua grande e última decisão

O dia que não tencionava viver. Um dia, apenas. A diferença entre tudo.
Um dia todo se passara desde o veneno da véspera. Um dia todo para morrer. E fracassara.

Sara Muzira. Açúcar negroQuando conseguiu despertar novamente, sentiu como se apertassem suas têmporas com uma morsa. Veias latejando junto ao ouvido. Tonturas. Pontadas no cérebro. Dormira todo o domingo, a janela escura. Decidido a levantar-se. Cabeça entre as mãos, caretas de dor. Ali estava o dia, morrendo. Dias, Júlio. O dia que não tencionava viver. Um dia, apenas. A diferença entre tudo. Um dia todo se passara desde o veneno da véspera. Um dia todo para morrer. E fracassara.

Por quê? Dose insuficiente? Aí está, não se deve confiar muito em revistas. Agora: recuperar a saúde e planejar tudo novamente. Podia correr ao banheiro e abrir os pulsos com uma lâmina, mas não suportava a ideia de agonizar entre seu próprio sangue, o príncipe e seus métodos. Seu erro, como sempre, era ser racional demais, além de alguma repugnância por parte de sua natureza, o que não significava que procurasse morrer com dignidade ou coisa do gênero. Dignidade, ele ri. Questão pessoal, nada mais, questão de escolha. Se podia morrer dormindo, por que não apostar nos comprimidos novamente, evitando assim engendrar tragediazinhas sanguinolentas, o que tanto agrada à saparia-alvo da imprensa, aos leitores de tabloides e à audiência dos telejornais? Melhor: desta vez não iria falhar. Teria tempo de planejar com mais cuidado, saberia exagerar na dose. Nada mais simples, pensou didaticamente. Detalhes que lhe haviam escapado, exemplo: que fazer com seu diário íntimo. Queimá-lo, talvez. Queimá-lo, certo. Diante de tudo, eram apenas páginas, papel. Claro, sem valor. Queimá-lo. Queimá-lo. Por que não o fizera antes? E por que não o fazia imediatamente? Queimá-lo, talvez? Se não tinha valor… por que então se preocupar com ele? Ou queimá-lo?

Rosto pálido no espelho, olhos aparentemente mais claros. De fato mais claros, efeito da droga, supunha. Lembrou-se sobressaltado de que havia deparado com um rosto, antes de morrer – de tentar morrer, o trágico. Quem era? O fantasma de Bruno? Júlio, não seja ridículo. Distúrbios da imaginação ou… Seu próprio rosto, de alguma forma. O que afinal não era senão…

“Atchim!”

Roupas molhadas, o banho da véspera. Calafrios. Outro espirro. Sem dúvida, um resfriado. E como era voltar da morte? As luzes da cidade, bastava abrir a janela, não queria pensar nisso ainda. Era um corpo vencido, um enfermo com pontadas no estômago e a cabeça dolorida, presa de um incômodo resfriado. Aqui está, Júlio, o que restou de seu dia e sua noite, sua luta consigo mesmo e após uma agonizante batalha solitária, perdida, produto de sua firme e última decisão. O que restou: um resfriado.

Os últimos dias de agosto

81. Música, ruídos: oásis e desertos – sequência

79. A Noite das Vitaminas – anterior

Guia de leitura

 Imagem: Sara Muzira. Açúcar negro.

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