Office in a Small City por Edward Hopper

Big Bang, celenterados e filhas mulheres

Meus amigos, as palavras podem mudar o mundo. Mas não muito.
Esses nomes são inofensivos.

Emmanuelle Vial. Esplendor e decadência (detalhe inferior).Então, quando essas moléculas estavam se agregando, havia ali o espírito divino fazendo tudo acontecer, mas como o movimento era aleatório, não era preciso que alguém fizesse algo acontecer, elas se agrupariam do mesmo jeito, outra coisa, o que havia então por trás do Big Bang?, por trás?, como por trás?, por trás de onde, se não havia espaço?, você entendeu, quero dizer antes, o que havia antes?!, não havia um antes, não havia o tempo, não podia haver um minuto antes, um dia antes, não podia haver um, espera, espera, deixa eu falar, vocês não me escutam, então de onde vem a matéria e essa porra toda?, de onde vem a matéria?!, pensa que eu fico assustado com uma pergunta dessas?, a flutuação quântica e os campos de radiação é que são os responsáveis, campos de radiação, não está confundindo as coisas não?, tanto faz, é a mesma coisa, cacete, a matéria não pode vir de algum lugar, não existia um lugar de onde vir, se eu entro por aquela porta, eu estou vindo de outro lugar, mas tem que haver o lugar, no Big Bang estava tudo lá, num lugar só, simples, viu só?, simples o cacete, você está só fugindo da questão, não estou não, está sim, eu não fujo de nenhuma questão, de questão nenhuma, foge sim, vocês dois aí, aliás nada estava no Big Bang, o Big Bang é a porrada inicial, lembram?, não é um lugar, é um evento, enquanto estava lá, quietinho, não chamava Big Bang, não pensaram nisso?, claro que pensei, mas não falei, espera, espera, olha, como é que não existe o nada?, quem falou que não existe o nada? você, outro dia, se no momento inicial não havia espaço nem tempo nem partículas de porra nenhuma então tudo em volta era o nada, não só isso, até onde o universo se expandiu, expandiu, depois é o nada de novo, é, ele tem alguma razão, alguma?!, não seja injusto, se as condições de vida em nosso planeta são tão boas, então quem teria planejado isso tudo, mas há nove planetas (Plutão ainda vale), eles estão também em posições aleatórias, não faz sentido planejar a vida em um planeta e nada nos outros, pra que servem os outros?, por que não são quinze ou trinta planetas?, ou um só, com vida, não estava bom?, outro dia eu disse isso pra minha mãe, ela ficou furiosa, disse que eu estava precisando conversar com um padre…

A conversa se atropela apaixonadamente entre grandes perguntas, loucas respostas, possibilidades abstratas e reais garrafas de cerveja. No fim, os rapazes sempre concluem que, com Deus, nunca chegarão a porr… a coisa nenhuma.

“O que é científico é de todos. A vida é natural. As religiões dividem a humanidade. A Ciência a une.”

Mas não há debates ou discussões filosóficas que não se atenuem ou mesmo se interrompam à passagem de alguma boa fêmea procriadora, quadris mais largos que a cintura, seios saudáveis e potencialmente propensos à boa nutrição do descendente.

“Cabelos maravilhosos, olha só, enormes, cacheados, caindo assim…”

“Danilo, você, decididamente, não sabe fazer poesia. Que descrição mais… literal.”

“Parece uma medusa.”

“Melhorou um pouco, Verne. Mas ainda… óbvio demais. A Medusa, a górgone, você quer dizer. Não uma medusa, o celenterado.”

“Celenterado é você, porra! Medusa porque me paralisou, só isso. Ah! É mesmo. Os cabelos lembram um celent…”

Morghini, como se estivesse triste e desconsolado, simulando bater com a cabeça na parede, mas fazendo-o duramente na palma da mão, três ou quatro vezes, com amarga convicção, enquanto conclui: “Ele descobriu tudo…”.

Vamos lá. Mais cerveja, mais tempo ocioso, mais tempo produtivo na imaginação de todos.

“Nunca conheci nenhuma mulher chamada Medusa. Acho um nome lindo. Pensei em sugerir a um ou outro colega que estava pra ter nenê, mas não sabia se iriam me entender mal, sabe como é essa gente careta e carola. Imagino uma menininha, o máximo de gracinha, chamada Medusa; parando de correr na festinha só porque a gente a segurou enquanto ela passava: ‘Como é que você se chama, linda?’. E ela, quase escandindo as sílabas: ‘Me… du… sa!’, feliz. Fala a verdade. Os gregos sabiam do que era belo.”

“Val, você é um… Você tem um… Você falou tudo.”

“Minha filha vai se chamar Medusa, pode apostar. Alguém tem que ter coragem de enfrentar essa mesmice, esse sistema padronizado, essa repressão velada. Alguém tem que romper esses ranços culturais.”

“A minha vai chamar Água-Viva.”

“E a minha, Perséfone. Falei primeiro.”

Todos decidiram ter filhas. Só filhas, nada de meninos.

“Meus amigos, as palavras podem mudar o mundo. Mas não muito. Esses nomes são inofensivos. E os que articulam o poder organizado também nos repassam palavras, aliás, muito bem escolhidas, muito bem colocadas, enquanto nós as dispersamos ao vento, ao acaso, nessas mesas meladas de cerveja, achando que estamos fazendo uma grande coisa no mundo, uma grande porra na vida, e o sistema dominante absorve tudo, e as Medusas e as Águas-Vivas serão nomes de atrizes, cantoras e modelos, serão produtos à venda.”

“Puxa, Valdinei, você… Onde você leu isso?”

Não tinha lido nada, ele conclui por sua própria conta, o que nenhum deles parece conseguir assim, da própria boca, sem medo de errar, sem medo de ser refutado imediatamente por algum outro ali que tivesse, por acaso, lido na semana anterior algo que lhes desmontasse a argumentação – eles, esse grupo de amigos que se supõe mais do que isso, que se alimenta da própria rivalidade interna e permanente, das faíscas de vaidade em menor grau, destruidora e também reconciliadora, por razões de sobrevivência coletiva.

E é sempre ao Valdinei que eles recorrem e se dirigem quando querem (discretamente e sem alarde, por vergonha de admitirem que não a alcançam) alguma visão mais acertada das coisas.

“Val, e a democracia?”, dessa vez um deles o entrevista em público mesmo, estão todos curiosos com as eventuais e promissoras mudanças em sua pátria-mãe, o governo militar em seus últimos suspiros, o país endividado e esgotado, acordos para não punir os torturadores, nada de eleições por enquanto, mantenham a esperança, por favor.

“E a democracia, Val?”

Ele leva a mão à testa, parecendo abatido, depois a desce torta e se contorcendo sobre o rosto, deformando as bochechas e os lábios.

“Ah, nem me fale em democracia, velho. Já estou muito irritado por hoje.”

Valdinei certa vez mostrou a Danilo um cartum com um precipício clássico, um mar cinzento e os dizeres: Onde tudo termina… “Não é genial? Não é inspirador?”, ele sorrindo. Não. É assustador. Mas Danilo não tem ânimo de lhe dizer isso. “É… É sim”, concorda. (Mais tarde ele usará essa ideia em seu amaldiçoado A canção de pedra, dramatizando ao extremo essas palavras, que desde sempre o haviam impressionado.) Mas, estranhamente, Danilo recorda o cartum de outra maneira, são as tais ciladas da memória, porque ele sabe que não é essa a imagem do cartum original, e admite que não consegue defini-la com segurança. Contempla na tela mágica da memória as últimas rochas diante do mesmo mar cinzento, uma referência inconsciente ou talvez atávica ao nec plus ultra dos antigos.

Verne é o primeiro a comunicá-lo da morte lotérica de Valdinei. É inacreditável que aquele aviãozinho, afinal, na mesma rota, de raspão, num instante quase sem impacto, por um triz e… De qualquer forma, já aconteceu. Por inconcebível que seja. Danilo revê sinais e sorrisos dele. De pé, no meio da sala, vê na tela os destroços do 737, abatido cegamente pelo jatinho executivo, em meio à floresta, onde ficaram os corpos dos passageiros e dos tripulantes – morreram todos. Onde o amigo jaz entre estranhos, unidos pela mesma desgraça. Onde terá, talvez brilhantemente, pensado em algo pela última vez. Onde tudo termina.

Marcas de gentis predadores

 16. Tim-tim com suaves suspeitas – sequência

14. Triste do mesmo jeito – anterior

Guia de leitura

Imagem: Emmanuelle Vial. Esplendor e decadência (detalhe inferior).

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