Office in a Small City por Edward Hopper

Tim-tim com suaves suspeitas

Com a razão, poderíamos ser sempre bem-sucedidos.
Mas vem algum sentimentozinho, sutil ou violento, incompreensível, sorrateiro mas ativo, e põe tudo abaixo.

ibere-camargo4“Ai, vou chorar… Chuif…”

“Palhaça. Isso me fazia sofrer, me respeite. Aquilo do tal colega cabeludo dela não queria dizer nada. Foi só uma carona. Ela podia ter ido com ele, só isso. E eu não tinha nada com aquela história, afinal. Ela não era nada minha. Certo? Como eu poderia… Ah, mas nós vamos ficar aqui, nessa conversa besta de adolescente? Não, não. Chega. Acabou o assunto.”

“Ah, mas eu já estava me sentindo na faculdade de novo…”

“E o vinho?”

“Hum! Mesmo! Já deve estar bom.”

Liana vai até o frigobar, onde enfiou, meia hora atrás, o vinho que trouxera na bolsa. Ele admira a agilidade com que ela deixa os lençóis e se ergue, sai andando da cama para o chão, uma perna após outra, como se apenas descesse um grande degrau, a bundinha rígida se exibindo a ele em todos os seus momentos e movimentos. A cada pequena porção do quarto, a luz e a sombra se alternam, formando gradações de penumbra entre um gesto e outro. Ela se curva para abrir a porta da pequena geladeira, puxa a garrafa lá de dentro.

“Parece que já está bom. É, parece que sim. Comprei gelado. Já estava gelado quando chegamos.”

“Tudo bem, traz aqui, me passa esse… esse…”

“Esse o quê? O saca-rolhas? Cadê? Ah: aqui em cima.”

“Esse… Esse vinho, você disse…”

Liana o olha com alguma atenção.

“Distraído, não é? Pensando, não é? Me fala…”

“É. É mesmo”, Danilo enquanto manipula a garrafa e o saca-rolhas. “Pensei por um instante que… Se eu tivesse ficado com ela, com a Ana Lúcia, digo, se a gente tivesse mesmo namorado, ficado juntos, quem sabe ela não teria… Não estaria… Ah, que bobagem.”

“Possível. Como você não acredita em destino, talvez. Mas acho que do jeito que ela era, sabe, alguma coisa assim tinha uma grande chance de acontecer, mais dia, menos dia. Independente de você ter ficado com ela ou não ter ficado, porque… Mas, afinal, fui eu que provoquei isso tudo”, mão nos cabelos dele, carinho.

“Você o quê?”, Danilo surpreso, julgando não ter entendido.

“Fui eu a culpada”, Liana acariciando a cabeça dele, uns carinhos caninos, como se o preparasse para alguma grande coisa, uma novidade talvez, e acenando ao mesmo tempo com alguma compensação.

“O quê?!”, ele repete, interrompendo o gesto de torcer o saca-rolhas já enterrado na cortiça macia. “Você o quê?! O que você está me dizendo?”

“Que eu provoquei isso tudo. Que eu sou a culpada.”

Danilo está imóvel. O saca-rolhas, a garrafa.

“A gente poderia estar falando de outra coisa agora.”

“Ahn…”, com alívio. “Isso?”

Abre o vinho com um ploc!. Estranhamente, esse som lhe parece uma pergunta: ploc?

“Ei, o que você pensou? Você… Você achou que… Ahahah… Ua-hau! Imagine. Anda mesmo distraído, estou vendo. E disse que não sentia mais nada por ela, por aquilo tudo, não é? Tudo bem. Eu não tinha acreditado mesmo.”

“Você me trapaceou. Se eu ainda sinto alguma coisa, nem sei mais. Lembro até que a Ana Lúcia encarava os sentimentos como se fossem defeitos nossos. Que era esse o problema. Era essa a nossa imperfeição, a nossa desgraça: ter sentimentos.”

Liana espera, com as taças.

“Uau… Ela era mesmo estranha. Uma menina estranha, não era? Mas já falei isso, eu sei. Só que agora eu estou começando a sentir ciúmes. Mas isso eu não falei ainda”, braço dobrado sobre um ombro dele, taça na mão. “Falei?”

“Não. Não falou. Dá aqui a sua taça…”

Lug, lug, lug

“Tá bom. Brigada.”

“Ela dizia que os sentimentos eram a nossa pior característica, algo assim, mais ou menos assim. A nossa pior parte, a parte mais defeituosa. Com a razão, poderíamos ser sempre bem-sucedidos. (Acho que ela nunca usou a palavra razão, não lembro mesmo, isso é por minha conta.) Mas vem algum sentimentozinho, sutil ou violento, incompreensível, imperceptível, sorrateiro mas ativo, e põe tudo abaixo. Por isso, ela achava ridículos aqueles filmes em que as máquinas, os robôs e os ciborgs queriam ser como nós, humanos. Bom, pra falar a verdade, eu também sempre achei isso ridículo. Essas máquinas, esses robôs, estranhamente, querem sofrer, querem ter sentimentos, querem se apaixonar, afagar borboletinhas, brincar com uma criança num parque, chorar de saudade e outras idiotices das quais a gente gostaria de se livrar e não consegue. Uma babaquice total.” Põe o vinho ali perto, segura sua taça agora cheia de uma linda cor de… Uma cor de… Que cor é essa? Ele parece perdido de novo.

“Sabe que eu estou te estranhando? Não sabia desse lado seu. Como assim? Fala de novo. Você acha que seria melhor se a gente não tivesse sentimentos? Melhor se ninguém se apaixonasse?”

Sim, claro que sim.

“Não, claro que não. São outras coisas que penso. Muita coisa difícil e triste que acontece nas nossas vidas é por causa dos nossos sentimentos. Só isso. Mas cinema é cinema, ora, eles precisam dessas fantasias todas…”

“Não, não, mas deixa o cinema, volta um pouco, não é isso. Ela era uma boba então, essa Ana. Os sentimentos são o que nós temos de melhor, são a nossa vida. Pensar, calcular, até um computador faz por nós. Sentimentos são a coisa mais bonita, mais forte. Quando a gente está vivendo um sentimento intenso, não existe nada melhor do que isso. Mesmo que seja triste. É intenso assim mesmo, e isso é o que importa.”

“É sim. Você tem razão. É isso mesmo. E não pense que não tenho sentimentos, só faltava…”

“Não, não penso. Nem adianta. Já te conheço um pouco. É mais sensível do que admite. Mas não vive isso plenamente, dá pra ver. Gosta de ficar lá pela metade, no meio do caminho e… Deixa, nem vou falar. Tim-tim?”

“Tim.”

Marcas de gentis predadores

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15. Big Bang, celenterados e filhas mulheres – anterior

Guia de leitura

Imagem: Iberê Camargo. Sem título. 1960.

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