Office in a Small City por Edward Hopper

O bobo foi à festa

Primeiro, teve vontade de morrer. Depois, teve vontade de matar.
Depois ainda, teve vontade de ligar para ela, não queria deixar que aquilo tudo passasse assim.

Frans Hals. Jovem cigana. 1630Logo após ter contado tanto de seu passado a Liana, Danilo revive a decepção, amarga e surdamente devastadora, de ter flagrado Ana Lúcia indo embora, daquela vez, no carro de um outro. Primeiro, teve vontade de morrer. Depois, teve vontade de matar. Depois ainda, teve vontade de ligar para ela, não queria deixar que aquilo tudo passasse assim. Depois, aquele segredo das conchinhas, uma revelação tão pessoal, resultante de um ato de extrema confiança, não podia ser algo aleatório, era sim um sinal forte de que essa garota gostosa, confusa e especial, o notava. E não só isso: ela percebia que ele era sensível e verdadeiro, e o considerava diferente dos demais. Depois… Bom. E daí?

Pensou em ligar para Ana, como antes – como antes havia pensado, entenda-se. Mas não sabia o que dizer especialmente, não tinha coragem. Portanto, que ficasse assim mesmo, e que o planeta continuasse girando, como ele gostava e não gostava, periodicamente, de lembrar.

Ela ligou. Convidando-o para uma festa de sua turma, uma dessas festinhas com o objetivo de arrecadar fundos, ajudar nas despesas de formatura. Ele foi, pagou pelo convite. Considerou, ou melhor, sonhou uma porção de possibilidades. (Possibilidades: beijo na varanda, entre árvores, mãos dadas caminhando pela alameda, não se esquecendo de incluir o luar.) Não havia varanda. Não havia árvores nem jardim para onde sair. Alameda, nem de longe algo parecido. Festa de desconhecidos, solidão. Ele finge ficar lendo o verso das capas dos discos que se espalham sobre uma mesinha bagunçada, cheia de fios, cabos e plugues, restos de vodca com limão. Um desastre. Ana Lúcia anda com um cara o tempo todo, para lá e para cá. Um sujeito antipático, que Danilo não viu sorrir uma única vez. Que parecia não dar a mínima para ela. Mas ela o beijava no rosto e sorria, sorria com ele, saía com ele, sumia com ele. Voltava à festa, devendo ter trocado talvez duas, três palavras com esse seu convidado iludido, receptor de suas conchinhas e príncipe das alamedas noturnas, algo como “que bom que você veio”, oi e tchau. Uma festinha para arrecadar dinheiro. O idiota foi. Feliz da vida. Achando que o negócio era com ele. Horrível. Tudo ficou horrível. E aquele sujeito era horrível também. Danilo não atinava com o que ela ou qualquer outra mulher do mundo poderia ver de bom naquele calhorda de rosto fechado, olhar cinzento (mentalizou a expressão espírito obscuro, que ouvira recentemente, pensou até no louco do Charles Manson), provavelmente sem cultura e sem interesse em poesia, sem a menor intenção de agradar alguém. Horrível. Horrível.

Nos outros dias, ele a via na escola, como sempre. Ela sorria, ele sorria, falavam oi, mas agora ele pensava seriamente em evitá-la, evitá-la mesmo, fazendo encerrar toda aquela idiotice que só funcionava bem em sua traiçoeira imaginação. (Só o que sua prodigiosa imaginação sequer cogitava era que, poucas semanas à frente, ele estaria depondo aos investigadores por causa da morte trágica dessa ninfa de erros.) E tornava a classificá-la como uma burrinha inútil, uma piranha ordinária sem nenhum critério. Era a raiva. Ela não era burra nada, era até, segundo uma definição secreta dele, instintivamente estratégica – só não se adaptava ao esforço que exigiam os estudos, à escola convencional. Muito bem, estava bom assim: quanto mais a odiasse, melhor para ele. No fim, esses amores apaixonados são uma doença mental mesmo, que isso não é amor coisa nenhuma. Com isso, menos se envolveria, menos sofreria. E estaria livre de qualquer complicação. Encerravam-se, portanto, as esperanças. Encerravam-se as complicações. Deixaria de ser o bobo, o apaixonado ansioso, deixaria de se frustrar e… – quase sem perceber, girou a mão no espaço à frente, fazendo a mímica de uma cansativa continuidade enquanto repetia dentro de si mesmo: etc., etc… Enfim, estaria livre.

Outro dia, vida normal: só imagens dela na cabeça. Conversa com um colega do segundo ano que, conforme já havia observado, também conhecia Ana Lúcia. Ele, o secreto ressentido, muito sorrateiramente:

“Parece legal essa menina, não acha? Você conhece?”

Ela passa por perto, em outra direção, sem tê-los visto.

“Ah, sei. Conheço”, meio sem ânimo.

“E ela… é bem gostosa, não acha?”

O colega olha de relance, ela já desaparece por trás de um vaso gigantesco, com uma planta gigantesca, ao lado de uma coluna gigantesca. Havia um tanto de coisas naquela escola que eram inutilmente gigantescas.

“Quem, a Ana Lúcia? Ahn… Gostosa ela é mesmo. Uma bela bunda, abençoada. E uns peitinhos na hora certa. Mas é uma tontinha, isso é o que ela é. Uma chata que só enche o saco.”

Danilo não se contenta com a descrição tosca, prefere provocar um pouco mais.

“Mas coitada. Eu fiquei sabendo que ela tem uma vida difícil, que foi criada pela mãe, o pai sumiu de casa quando ela era pequena…”

“Eu sei, eu sei, fiquei sabendo também. Mas e daí?”

“Daí que… Ora, a gente consegue entender melhor, não é?”

“Ih, cara… Escuta só, não fica com pena dela não. Quer saber? Ela se faz de vítima, acaba conseguindo tudo que quer. Uma malandra, uma grande safada. Olha, eu sei de um monte de caras, só aqui na faculdade, que já comeram ela direitinho. Pode crer.”

Com isso, Danilo fica branco. Engasga com a saliva, ou quase.

“É mesmo? Sério?” Precisa com urgência remediar isso tudo, principalmente para si mesmo, e agarrar-se a uma alternativa. “Não sei não. Esses caras mentem muito.”

“Ih, cara. Não esquenta com uma coisa dessas não. Ela é só mais uma putinha agitando a bunda aqui na faculdade, circulando por aí, sem nada na cabeça.”

“Ahahah…”, ele finge rir com vontade. “Boa essa, hein? Boa mesmo…”

Finge mal, como sempre. Péssimo.

Marcas de gentis predadores

 23. A foto deles do Beatles – sequência

21. Enquanto seu ônibus não vem – anterior

Guia de leitura

Imagem: Frans Hals. Jovem cigana. 1630.

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