Office in a Small City por Edward Hopper

Cinzento por toda parte

Alguém gritava uma ordem de serviço, uma voz distante.
Outro carregava um grande pacote, um pouco do peso de estar vivo, como todo cidadão que compra e paga, e percorre sua vida repetindo opiniões que acredita serem suas, outro portador dos discursos governamentais e da fala de seu patrão, salvo honrosas exceções.

John Cook. Luzes da BroadwayUm homem caminha pelo chão, cinzento por toda parte, um homem pelo chão e todo cinzento, um homem cinzento caminha por tudo, um homem pelo chão…

Sem dúvida, o inverno. O dia nascera frio e sem atrativos, nem mesmo se poderia dizer que sugerisse uma opção de fuga. Por que disse isso? Por causa de algum fenômeno climático, a cidade amanhecera sob uma neblina espessa e esbranquiçada, o que era pouco comum em outras estações, mesmo as de chuvas. Pessoas metidas em agasalhos formigavam pelos calçadões, onde os únicos veículos permitidos eram os carros blindados e os caminhões de coleta. Um carro-forte e uma perua dos correios transitavam em meio à confusão dos cidadãos em movimento, lanternas acesas contra a cerração – circulando em velocidades bastante reduzidas, pareciam fantasmagóricos. As lojas, nem todas, subiam portas para o dia. Das galerias e dos balcões de café, vinha o tilintar cotidiano de xícaras e pequenos talheres, o que fez Júlio pensar no chá horroroso que Estela lhe servira há pouco mais de uma semana. Alguém gritava uma ordem de serviço, uma voz distante. Outro carregava um grande pacote, um pouco do peso de estar vivo, como todo cidadão que compra e paga, e percorre sua vida repetindo opiniões que acredita serem suas, outro portador dos discursos governamentais e da fala de seu patrão, salvo honrosas exceções. Júlio saboreava com certa melancolia a realidade daquelas manhãs. Por ali, passava periodicamente o inverno, por coisas e gente, os dias somando semanas, as semanas somando meses e anos que nunca mais se haveriam de repetir, para que, no futuro, se transformassem talvez em uma lembrança, uma ilustração, uma imagem de tudo o que não mais se alcançaria com os olhos, como se deu com as cidades do passado e os invernos de todos os países e os personagens mais significativos da história, enquanto ele, junto a uma infinidade de semelhantes, também ia, à sua maneira, atravessando o mundo. Alguém sonharia, mais tarde, essa realidade no passado, estando fora dela, e poderia pensar que… Uma bicicleta de entregas quase o atropelou. Júlio desviou-se a tempo. Era aconselhável (e saudável) não perder de vista que aquilo tudo era ainda o presente – as coisas estavam de fato acontecendo. Uma formiga de bicicleta, uma formiga a pé. Todas buscando o dia que haverão de perder. “Por sermos tão pequenos”, analisou o formigão Júlio Dias, “criamos também certos momentos de glória bastante acessíveis: festas de aniversário, casamentos, formaturas, sempre algo que ponha alguém especial por uma noite, com isso fazendo-o deitar-se com um secreto sorriso de satisfação e adormecer acreditando na vida por mais um dia.” Também em função de sua insignificância, as formigas vivem perguntando-se as horas no elevador, comentando o frio ou a chuva, as taxas de inflação, as trapaças do governo, no fundo esperando que ocorra algum extraordinário assalto a banco, por exemplo, para que tenham algo mais que dizer às outras. Ele tinha também a impressão de que as pessoas que encontravam suas conclusões, sua linha de pensamento, seus valores morais afinal decididos, sua opção profissional ou religião ou opinião política, agiam de acordo com suas limitações, que sua inteligência não podia ir além, do contrário acabariam como Júlio, uma aberração ideológica, um monstro dialético comendo-se por dentro, por isso então protegiam-se com a bossa nova, os demônios bem-comportados, as piadas de salão, questionamentos com limites, Cristo enquanto homem, Deus enquanto carne, sorrisos amarelos e céu azul. Sim, mas ele pensava em encontrar algo diferente de tudo isso, o que se parecesse com atravessar a vida sem grandes ideologias, sem uma causa definida, nem por isso munido apenas do pessimismo daquele cidadão sem crença no meio da história, história nem tanto, outra palavra conhecida e perigosa, antes algo que obedecesse à vida com o que há nela de complexo e simples, dentro das condições de sua limitação pessoal, ainda que se costume repetir sempre que não há limites para nosso progresso e só uns poucos desconfiem de tais campanhas universais. Júlio atravessava um trecho que dava nos fundos de uma viela úmida, de onde subia um odor insuportável de urina. Alguém sempre urinava ali durante a noite, nas portas das lojas inclusive, e o sol ressecava tudo pela manhã, fazendo exalar odores ainda mais pestilentos. Era preciso suportar, bem ou mal, aqueles caminhos. E acreditar na vida por mais um dia. Sim, mais um dia. E ele estava preso ao cerne desse dia, um simétrico recipiente de tempo, tiranizado por seu corpo, seu físico em funcionamento, sua mente exausta. O avanço e a inércia de suas solidões deixavam como resíduo uma angústia esmaecida, tímida mas viscosa, latejando não nas têmporas, mas à frente de seus olhos, no cinzento que o cercava, quando pareciam próximas, tais solidões, de fazê-lo esquecer.

Júlio via no inverno algo semelhante ao processo da crisálida ou a qualquer metamorfose que também lembrasse a hibernação, a gravidez, o vírus incubado, os silêncios perturbadores, no fundo prenunciando alguma estonteante revelação e como um estranho êxtase quase atingido, mas já escapando por entre os dedos, tão logo parecesse capturado. E quando nos interpretamos, é o inverno interpretando-se a si mesmo? Um inverno será talvez, de alguma maneira, todos os invernos? O que lhe pertencia afinal? Parecia livre de certos lapsos de solidariedade, se é que se pode chamar assim, que anos atrás o enredavam, indefeso e comovido, em dias de neblina e grandes baixas de temperatura, ao constatar que os semelhantes mais se aproximavam, trocando olhares que contavam, entre os diálogos, de como se sentiam ameaçados pelo mau tempo, um pouco vítimas, como quando estão todos presos numa mesma cela ou condenados pela mesma revolução frustrada, um atavismo talvez pré-histórico e pré-humano, quando o inverno podia dizimar toda uma tribo, como quando, nessa época, encontrara a primeira vítima do dia, ainda no calçadão, e caminharam juntos para o trabalho, Pedro, numa jaqueta parecida com a sua, e Júlio teve vontade de dizer-lhe: “Aqui estamos nós, hein, Pedro? Outro inverno. Sempre mais um. E estamos aqui.”. Vontade de dizer a todos: “Eu me sinto bem porque cheguei até aqui. É o inverno. Estamos todos juntos.”. Mas nada disso se repetiria. E certamente não tornaria a iludi-lo, por sorte.

Os últimos dias de agosto

91. Café com neblina imprevista – sequência

89. Não diga! Eu também… – anterior

Guia de leitura

Imagem: John Cook. Luzes da Broadway (detalhe inferior).

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