Office in a Small City por Edward Hopper

Alan nos deixa

Não quer que lhe digam.
Não quer pensar em tantas mais coisas do que apenas pode presenciar com olhos e ouvidos, com o mínimo de misticismo.

John Atkinson Grinshaw. Um brilho dourado.Quando encontram seu colega Alan num terno azul-escuro, sem vincos, cabelos cuidadosamente penteados, postura elegante, sóbria e estudada como para impressioná-los, recordam que poucas vezes o viram tão bem arrumado como nessa tarde. Seu caixão é convencional, mas para os rapazes tem todo um aspecto solene – é que não estão habituados a frequentar a morte.

“Ele gostava de pretas”, Souto desconsolado, falando a Verne.

Valdinei procura o rosto dele com ar interrogativo. Souto completa: “E vermelhas.”.

Danilo olha um pouco para cada um deles. Só isso.

“O quê?”, diz Valdinei num sussurro, inclinando a cabeça, e em parte o corpo, na direção de Souto, não querendo crer que talvez o compreendesse.

Souto o olha por um instante, volta à sua posição discreta, mãos cruzadas ao longo do paletó, sobre o ventre, como protegendo os órgãos genitais. “Calcinhas”, explica.

Valdinei procura outra vez seu rosto, sua expressão, mas ele não está brincando. É apenas inocente. É só no que sabe falar. É o seu possível, frente a uma situação que a outros costuma inspirar graves filosofias, referências religiosas, adágios equivocados, enfim, mentiras agradáveis que nos inventamos por não conhecermos a verdade.

“Pelo amor de Deus, Souto. Isso aqui é um velório.”

O escritório inteiro está lá. Valdinei não falou em voz alta. Mas Souto o espanta com um gesto de mão, como pedindo que abaixe a voz e o deixe em paz – e parece não haver momento melhor do que esse para se pedir que nos deixem em paz. Verne parece preocupado, olhando o amigo morto, os outros não entendem por quê. Morghini se desloca quase o tempo todo: sai, volta, torna a deixar o salão, fuma um cigarro lá fora, em meio a uns jardins bonitos, numa inquietude tão grande que nem os convida a ir com ele. Danilo só espera. Não querendo mentir a si mesmo, admite por um momento uma ridícula inveja do morto, só por ele estar livre de todas as atribulações chatas do escritório. Bem, não é o caso de morrer, é o caso de tirar férias. Sim, está exausto. Não tem vontade de conversar e sabe que tudo se resolverá sem a participação dele, para isso é que se pagam esses serviços funerários todos. E também para isso, outros se preocupam e sofrem por nós, afinal ninguém será salvo.

“E daí?”, Danilo ouve Morghini cochichando. “Eu também.”

Danilo nem quer saber do que tratam. Não quer que lhe digam. Não quer pensar em tantas mais coisas do que apenas pode ver e ouvir ao redor, do que pode presenciar com olhos e ouvidos, com o mínimo de misticismo e de lances associativos. Afinal, Alan não era tão seu amigo assim, era apenas um colega. Há tempos não falava propriamente com ele. Mesmo quando se encontravam, eram parte de um grupo maior, entre outros conhecidos, e a maneira de Alan ver a vida, seu imediatismo, sua vaidade permanente, sua falta de cultura e seu desinteresse pelas coisas mais relevantes do mundo, como a ciência e a poesia, nunca o atraíram muito.

“Também o quê?”, Souto respondendo a Verne. “Mas olha… Aquela deve ser a irmã dele.”

“Como você sabe?”

“A semelhança. Não está vendo?”

“Não vejo não. Acho que nem é da família, se você quer saber.”

Morghini está de volta. Posta-se entre eles. Entra na conversa. Agora três tagarelam, em tão baixo volume, tendo ao fundo princípios de prantos e controlados sorrisos, que só a Danilo, mais próximo, cabe o desprazer de ouvi-los – mentalmente preguiçoso, desinteressado.

“Como pode usar um decote assim?”, Verne observador. “Será que ela não percebe que há homens presentes?”

“Claro que percebe. Por isso mesmo, velho.”

“Cala essa boca, finge que não está vendo e dê graças a Deus.”

“Eu queria fazer uma oração em voz baixa, vocês me dão licença?”

“Pode ir.”

“Não, eu só quero que vocês fiquem quietos um pouco, só isso.”

“Não, não agora, faça o favor de se comportar. Olha, eu não estou brincando.”

Danilo só quer que os minutos todos prossigam, que o tempo gire e que tudo isso o devolva a um plano mais agradável, longe daquelas horas solenes, reprimidas, encapsuladas, de preferência na companhia de Júnia, que é em quem ele pensa muito por esses dias.

Por fim, vêm fechar o esquife. Ele nem olha. Uns homens mais baixos do que eles, em trajes escuros, movimentam-se com tal habilidade que parecem ter ensaiado gestos sincronizados. Mas é o seu trabalho, apenas. Homens da família tomam com firmeza as alças cromadas dessa caixa tão singular, tão conhecida e tão (ainda bem) esquecida por todos na maior parte do tempo, e a conduzem ao interior de um veículo negro e reluzente, com a logomarca da funerária nas laterais. Os funcionários tornam a assumir seus procedimentos. Danilo tem a impressão de que bateram a porta traseira com muita violência, e isso lhe causa certa indignação reprimida. Mas talvez tenha sido só um descuido, nada intencional. E Alan já não pode se incomodar com isso. Já não pode se incomodar com nada, reclamar de nada, que a morte é o fim de todas as necessidades. O tempo passa. Adeus.

Seguem quase lado a lado no caminho de volta, entre as bem varridas alamedas do cemitério. Quase, porque não cabem os cinco ao mesmo tempo em uma mesma travessa, e por isso têm de dar passagem uns aos outros em razão de alguma árvore descomunal, de violentas raízes estourando ladrilhos, ou de algum anjo reluzente, mal atravessado na ilha.

“Qual foi a última namorada dele, vocês lembram?”, Souto começa enquanto afrouxa a gravata.

“A Priscila”, Morghini de cabeça baixa. “Tesãozinho.”

“Vou confessar uma coisa pra vocês. Já cheguei a pensar que ele era bicha.”

“Não era não. Aquela Jane foi a última”, lembra Valdinei.

“Mas não era namorada. Uma vagabundinha que apareceu lá no serviço dele.”

“Achei que eles estivessem juntos.”

“Estavam mesmo. Mas era só rolo. Passatempo.”

“E o que não é?”, Danilo contesta. “Algum de vocês leva alguma coisa a sério?”

“Só você, pelo jeito”, Morghini com alegre sarcasmo. “Com a sua nova paixãozinha republicana.”

Danilo livra-se do paletó, jogando-o por sobre o ombro enquanto caminha. Não está irritado. É só o calor.

“Tudo bem, não precisa me lembrar disso”, erguendo a mão, como um político que pede calma ao parlamento, seguindo, passos mais rápidos, um pouco à frente dos outros. Ele se sente mal quando começa a pensar em tudo. E já está quase começando a pensar em tudo outra vez.

“Pelo menos ele não deixou ninguém,” Verne referindo-se a Alan, obviamente.

“Grande porra, não?” Souto outra vez, algo incomodado.

“Estou só falando, caralho.”

“Grande porra.”

Verne tropeça na raiz de uma árvore, tendo de improvisar uns súbitos passos desencontrados para não cair, o que os retém por um instante. Nunca perdem uma oportunidade de rir uns dos outros.

“Olha, vamos pro Alvorada”, propõe Morghini sem consultá-los, mas como se ainda estivesse em dúvida.

“Não vou beber hoje”, Verne sem entonação.

“Como não?”

“Toma um café então. Alguma coisa.”

“Não sei, essa coisa toda de ver o Alan, isso tudo não me fez muito bem.”

Souto pega-lhe o ombro. “É claro que não, nenhum de nós está se sentindo bem. Por isso é que nós devemos ficar juntos mais um pouco. Fiquei sabendo de uma sinuca perto do Tribunal…”

“Um café, só um café”, corta Valdinei. “Não começa a inventar outras farras, é sempre assim que a gente começa.”

“Ah! Não sei por que fico perdendo meu tempo com vocês.”

“Mas… Sabe de uma coisa?”, Morghini olhando longe à frente, como se não se dirigisse a nenhum deles. “Agora é que eu sinto mais vontade de fazer farra mesmo.”

“Eu não vou nessa”, Verne ao lado de Danilo.

Souto talvez queira apenas animar os amigos, nada é impossível. O mais provável é que ele de fato não se incomode com o que acabou de se desenrolar minutos atrás e esteja planejando novas noitadas para todos eles. Danilo compreende Verne e compreende Morghini: um prefere retrair-se, atitude de quem busca alguma reflexão ou de quem não sabe se desfazer de seu medo; outro busca queimar todos os cartuchos, apostar todas as fichas enquanto se move sobre a Terra, numa estratégia de compensação por um futuro que finalmente o vença. São essas as ciladas que a consciência de tempo lhes propõe, entre intensas sensações e apáticas angústias.

Souto, distraído, esbarra em um anjo armado de espada. “Viado!”, resmunga para si mesmo. Param por um minuto, só o bastante para constatar que tudo vai bem com o amigo, enquanto se divertem a sua custa e verificam um hematoma em seu braço direito. “Anjo viado, filho dum caralho!”, arremata a vítima, referindo-se ainda à altiva escultura. Danilo considera o magnífico anjo, de espada erguida, gesto decisivo e imponente, e não pode evitar uma impressão de virilidade, o que normalmente não poderia condizer com uma daquelas criaturas neutras. Religião, arte, cemitérios: em sua razão, essas coisas todas sempre soaram bastante estranhas.

“Me soltem, vamos embora”, Souto meio agourento. “Não sei por que fico perdendo meu tempo com vocês.”

Marcas de gentis predadores

 30. Sentimentos são defeitos nossos – sequência

28. Todos nós, de vez em quando… – anterior

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Imagem: John Atkinson Grimshaw. Um brilho dourado.

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