Office in a Small City por Edward Hopper

Pouco sobre Alan, muito sobre pouco

outo não sabe mais se ela está bem.
Surpreende-se que outros se preocupem com sua ex, e ele não mais.

Toulouse-Lautrec. A toalete. 1889 Nenhum plano. Mas tudo continua acontecendo.

Café Alvorada.

Uma das atendentes é motivo de observações obscenas por parte deles – sim, das partes dela. Claro que ela é atraente, bem proporcionada e agradavelmente profissional: finge o tempo todo que não os impressiona.

“Mais alguma coisa?”, assim, como trata qualquer freguês. “Num instante…”

Infelizmente, ainda falam em Alan. Considerando-se a faixa etária de todos eles e o fato de serem recém-desovados de alguma faculdade, Alan era quem possuía a melhor situação profissional: dois cargos acima, no departamento jurídico-financeiro, expediente regular, entre colegas homens de gravata e colegas mulheres de salto alto, em suma, ganhava mais do que dois deles ali juntos, além de continuar sendo considerado um profissional promissor. Tipo simpático, corpo rígido e aprumado, apreciava boas bebidas e se vestia como nenhum deles: de acordo com as estações do ano e seguindo tendências inventadas em outros países, como se uma mulher entendida em moda o orientasse. Cabelos no estilo que melhor lhe servia ao rosto, tudo confirmando uma preocupação justificada com a própria aparência, que parecia constituir seu bem primordial, a partir do qual abriam-se perspectivas, oportunidades, convites e que, por si só, parecia suficiente para seduzir sem dificuldade as mulheres.

“Que chatice isso de morrer, não?”, Morghini, como esperando uma confirmação.

“Chatos são vocês, lá, cochichando, com piadinhas…”

“Não contamos nenhuma piadinha. Nenhuma.”

“Aposto que ninguém fez uma oração. Você fez, Danilo?”

“Não.”

“Vocês tinham era inveja dele. Pra mim, essa história toda está muito mal contada, viu? Eu acho que ele foi assassinado.”

“O quê? Assassinado?”

“Mas por quê?”, Valdinei enfático, mãos trêmulas no ar, como implorando uma esmola. “Por que teria sido? Por quê?”

“Algum plano pra hoje à noite?”, Souto com alguma esperança.

Danilo diz que vai ver Júnia, quer conversar com ela.

“Quero dizer: algum plano pra nós?”

“Conversar, é?”, Morghini com um sorriso contido. Sempre, sempre malicioso.

“Claro que isso não é tudo. Mas eu sinto mesmo vontade de falar com ela. Essa que você chamou de paixãozinha… o quê?”

“Republicana. Você não disse que ela mora com duas colegas de escola?”

“Ah, isso? Ah, que bobeira. Mas que bobeira! Só porque ela mora numa república. Uma república de estudantes. Pensei que fosse pelo fato de ela ser toda politizada, consciente, o que aliás vocês nem sabem como é.”

“Ah, é? E como é levar pra cama uma menina toda consciente e politizada? É diferente? Conta aí, velho. O que ela faz?”

“Canta a Internacional sentadinha no seu pau?”

“Não levei ela pra cama, para com isso. Nós mal nos conhecemos, mal começamos a namorar, mas que coisa! Por que temos que correr assim pra cama? Como eu já vinha percebendo, e claro que vocês também, isso aqui já virou um clube dos cafajestes!”

“Ah, mas que mau humor, que exagero. Somos homens. Somos caçadores. Normal.”

“Acho que você fez um bom negócio, Danilo.” Souto tocando-lhe o antebraço sobre a mesa. “Agora só falta apresentar pra nós, uma última avaliação. Que você acha, Verne?”

“Ele encontrou o amor, meus amigos. São todos os sinais. Uma ativista política, inteligente, gostosinha…”

“Ah! Ele dizia o mesmo quando conheceu a Cris, aquela moreninha dos periquitinhos australianos. É a mesma conversa, a mesma periquitagem, o começo é sempre excitante. E o Verne, o Verne não vale, ele está mesmo apaixonado. Você está apaixonado, lamento.”

Apaixonado! Ele só quer a bundinha dela.”

Valdinei para Souto, com alguma atenção: “E a Mariana? Já ficou tudo acertado?”.

“Praticamente sim. Estou me sentindo um pouco melhor agora.”

“E ela, está bem?”

Se ela está bem? Souto não sabe mais se ela está bem. Surpreende-se que outros se preocupem com sua ex, e ele não mais. Valdinei tenta ajudar, mas isso faz reviver o que até há pouco incomodava ao Souto, algum conflito com a culpa. E ele não tem culpa. Passa as mãos sobre o rosto. “Imaginem, eu já estava traindo minha futura mulher, sem ser casado. A gente fazia planos, pensava em marcar a data do casamento… Meio de brincadeira, às vezes a sério, às vezes não. Mas poderia ser. É assim que as coisas começam.”

“Ela não era sua mulher, porra! Que complicação! Mostra aí o diploma do padre.”

“Não sei o que seria pior”, considera Valdinei. “Morghini, você não percebe, velho? Não se trata de ser casado. A expectativa de um casamento marcado, dado como certo, depois o cancelamento repentino, tudo isso pode ser uma decepção maior ainda, entendeu? Ou de outro tipo. Pode ter o efeito de um crime.”

Verne, em apoio a Souto: “Talvez seja mais difícil superar isso do que propriamente uma separação, quando a convivência já está desgastada, você sabe, essas coisas que os casados dizem.”.

“Que complicação! Vocês complicam tudo. Que casamento marcado, quem estava marcando o quê? Que crime, de quem? Saem pra tomar um sorvete e ficam escolhendo móveis na vitrine, para o futuro ninho de amor, mas que babaquice. Você só conheceu outra mulher, uma nova namorada, só isso, a vida é assim, cacete.”

“E deve ser por isso que você vive chifrando a coitada da Aline.”

“Claro que não é por isso. Uma coisa não tem nada com a outra.”

“O Morghini é a nossa garantia. Se um de nós precisar guardar um segredo, já sabe: não me entrega, eu não te entrego.”

“Isso é porque você não ama a Aline, velho. Acho que nem é capaz de considerar o que tem nas mãos, a menina bacana que ela é.”

“Verne, é o seguinte: vocês, românticos, têm que se foder mesmo. Entendeu? Têm que se foder. Quando for mais velho, vai me dar razão.”

“Por que usa sempre esse tipo de camisa, Morghini?”

“Não precisa desviar tanto assim…”

“Porque sou mais velho do que vocês. Porque sou melhor do que vocês. Porque me sinto mais digno.”

“Uau…”

“Eu sou um príncipe, sabia?”

“Claro. Sempre desconfiei…”

“Só vocês não perceberam isso ainda. Um príncipe. Sempre fui. Embora debilitado pela tragédia familiar.”

“Alteza, toma, tens aqui tua cerveja real. Abençoa-nos.”

Eles todos, cada um à sua maneira e orientados por suas limitações, acrescentam palpites, opiniões, análises e conselhos que poderão, talvez, provocar em Morghini alguma revisão de valores ou mesmo de sua vida até então. Ao fim de todas as pregações e propostas de reflexão, constatam que ele move a cabeça, abatido. “Que complicação… Vejam onde vim parar, olhem o meu fim de vida com esses caras. E pensar que eu era um príncipe…”

Marcas de gentis predadores

32. A Walther PPK – sequência

30. Sentimentos são defeitos nossos – anterior

Guia de leitura

Imagem: Henri de Toulouse-Lautrec. A toalete. 1889.

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