Office in a Small City por Edward Hopper

Johann Fust e a máquina de enganar

O mundo não: os homens.
Outras pessoas, em diversas posições da velha hierarquia, indiretamente, tão indiretamente que acabavam sempre invisíveis, voláteis, imunes.

Hans Hoffmann. Sem título. 1929Cinzento por toda parte. Lutar pela vida era óbvio e necessário. Que valor podia haver nisso? Não era de se estranhar que ele no fundo rejeitasse todos os bons exemplos de pessoas que se superaram ou resistiram a dificuldades, humilhações e outras porcarias que o mundo lhes infligiu. O mundo não: os homens. Outras pessoas, em diversas posições da velha hierarquia, indiretamente, tão indiretamente que acabavam sempre invisíveis, voláteis, imunes. As vítimas resistem, recomeçam, tornam a acreditar, que espetáculo este, e todos nós participando. Júlio desprezava em si mesmo tal capacidade. Detestava campanhas de televisão, discursos religiosos, livros positivistas, tudo o que o fizesse desviar-se de pensar nas verdadeiras relações entre os vivos. Via com desgosto a ascensão dos espermatozoides do esporte ou os heróis do cinema; ídolos da música, fã-clubes centrados em algum artista distante, subitamente tornado mito após um acidente ou uma overdose mortais; escritores pretensamente sensíveis ou idealistas que, em casa, conferiam o ouro resultante de suas historinhas – pois não acreditava no indivíduo, e sabia que mesmo o produto de obras como as de Edison e de Einstein dependiam de um certo número de outros indivíduos que, em última hipótese, os apoiasse. Se Edison não houvesse construído o fonógrafo, outro inventor o desenharia no futuro. As teorias de Einstein aceleraram o conhecimento dos físicos, mas quem tinha pressa em desmascarar os vazios? Está bem, Júlio, não seja covarde. Sempre um exagero para justificar-se. Por que se justificar?

Quando menino, colecionava figurinhas dos grandes inventores, e eram dezenas deles (centenas ou milhares, se pesquisados a fundo os bastidores dos galpões e dos laboratórios), expressão dos rostos adaptada ao que se espera da bondade inerente aos gênios idealistas, por vezes aquelas ruguinhas entre as sobrancelhas, fazendo lembrar sua ferrenha perseverança, todos mais ou menos encarnando seus objetivos, sua missão, com o mesmo empenho, enfileirados em galeria, como se houvessem todos trabalhado juntos, no mesmo lugar, ou concordassem uns com os outros. Johann Fust e seu genro, Peter Schöffer, talvez constassem daquele álbum se, uma geração mais tarde, não se houvesse comprovado o verdadeiro crédito pela criação da imprensa, a Johannes Gutenberg, ao fim de seus dias esquecido e endividado, de quem outros, como seu ex-sócio Schöffer, absorveram a paternidade do invento. Dizem que Elisha Gray patenteou seu telefone horas depois de Graham Bell. Foi John Fitch o pai do navio a vapor, não Robert Fulton, que apenas repetiu com sucesso as experiências de seu conterrâneo –sem contar que havia uma precária máquina a vapor enquanto Jesus Cristo ainda vivia, se é que viveu, obra de um engenheiro romano cujo retrato se desconhece. O inglês Francis Hauksbee foi o primeiro a obter a luz elétrica, por meio de uma esfera de vidro e uma manivela, isso em 1706. E foi um russo quem… Vamos, vamos. Por que se estender assim? Talvez cultivássemos Fust & Schöffer em lugar do velho Gutenberg, e admirássemos Fitch por Fulton, Gray por Graham Bell, mas o efeito seria o mesmo: indivíduos. Estes ou aqueles? Santos Dumont ou os irmãos Wright? Ninguém sabe quem inventou a roda ou o espelho – mas se soubessem, fariam outra figurinha. Tudo o que Júlio lentamente revia dava-lhe agora sinais de que sempre fora enganado. (Seria melhor viver enganado?) Mas não por alguém. Ele compreendia. Era de novo o perigo de ver. Fica-se de mãos vazias, ante uma galeria de valiosos semelhantes, cujas nacionalidades e datas os limitavam, destacados da ninhada humana. Nomes, figuras e expressões. E já estavam todos mortos.

Os últimos dias de agosto

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Imagem: Hans Hoffmann. Sem título. 1929.

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