Office in a Small City por Edward Hopper

Conquista-me ou te destruo

Impressionava-me que todos parecessem satisfeitos consigo mesmos.

Sempre sendo apenas o que eram, sempre um patamar abaixo do possível, sempre o medo de descobrirem sua força.

Marcel Duchamp. Retrato de jogadores de xadrez. 1911Minha situação na Leôncio & Barradas Advocacia Ltda. não andava nada bem, depois do incidente mais grave, especialmente quando me ocorreu revelar, de uma vez por todas, ao doutor Aguiar, minha intenção de não me corromper, custasse o que custasse. Quando eu disse ao Pradinho que, se fosse o caso, exporia ao doutor Aguiar as minhas verdadeiras opiniões, vi gotinhas de suor em sua testa. Ele me sussurrava:

“Se o Expedito souber disso, vai direto contar pro doutor Aguiar!”

“Eu mesmo conto. Não preciso dele.”

“Se o doutor Aguiar souber, vai ficar uma fera, uma fera!”, preconizou o Pradinho, tocando-me o ombro.

O doutor Aguiar era apenas o nosso supervisor.

“Se o doutor Barradas ficar sabendo, vai mandar te demitir!”, ele esboçou um gesto como esfarelando alguma coisa entre os dedos.

O doutor Barradas, que eu não conhecia, além de sócio, era um dos superintendentes.

“E se o doutor Leôncio souber disso, vai mandar te matar!”, concluiu meu dedicado colega detendo alguma outra mímica pela metade.

O doutor Leôncio, que eu também não fazia ideia de quem era, podia me matar.

“Rapaz!”, eu não podendo conter o riso. “Você é muito mais romântico do que eu pensava.”

“Nem romântico nem nada, olha, imagina se eu brincaria com uma coisa dessas!”, respondeu ainda um pouco assustado, só de termos abordado o assunto.

O fato é que tudo me conduzia a uma situação insustentável. E eu apenas aguardava o momento, que a cada dia se mostrava mais certo e irreversível, principalmente porque eu não pretendia mesmo voltar atrás.

Eu assistia ao movimento mecânico dos outros escravos, tendo em mente que os observava em meus últimos dias. Gente transitando de lá para cá, de cá para lá… – pessoas que, como eu, não deixariam vestígios de sua passagem sobre a Terra. Os homens se conquistam ou se destroem, não há outra saída. Porém, para evitar-se calmamente a aceitação de tal máxima, fingimos todo tipo de harmonia e fraternidade sobre a crosta do planeta, o que só funciona entre os muito, muito semelhantes – mesmo assim, quando em pequenos grupos. Eu via a colega com cara de caveira, muito entretida com não sei que papéis, conquistada, sobrevivente. O colega do cadastro parecendo sorrir sem mostrar os dentes, o queixo avançando além da boca e desenhando-lhe os lábios para cima, provavelmente em busca de novas descobertas para sua coleção de nomes perversos. Via estes, aqueles… Quanto ao Heitor Expedito, este o diga sobre ser conquistado: ele acabava de deixar a sala do supervisor, agradecendo alguma coisa repetidas vezes, prometendo outro algo também muitas vezes e quase andando de costas, mesmo depois de se ter fechado a porta. Alguém ostentando uns últimos fios eriçados sobre a calva rosada, além de outro bigode em harmonia com o conjunto, em contrapartida outro escolhendo usar os cabelos como um tufo disforme, e de alguma maneira esses todos parecem orgulhar-se disso, uns por algum motivo, outros por outros, enfim, dentre as muitas diferentes maneiras com que se pode revestir um crânio. Agenor contando a alguém suas caretas de rotina. O inseto do bigode. A magrinha que excitava os casados. Impressionava-me que todos parecessem satisfeitos consigo mesmos. Sempre sendo apenas o que eram. Sempre um patamar abaixo do possível. Sempre uma escala, um ponto, uma faixa, um item, um degrau a menos, sempre um pé atrás, sempre uma superstição ou uma crença, ou as duas, sempre o medo de descobrirem sua força.

Mais perto de mim, Cândido e Clemente datilografando como doidos. Também conquistados. Alguém os convencera de que não poderiam ser outros. E me faziam pensar: que amigos esses meus. Que colegas… Que mundo… Pensar que tudo não passa de um sonho, antes um pesadelo, registre-se, e que nenhum de nós existirá mais tarde, em um futuro relativamente próximo. Daqui a uns… vinte anos, por exemplo, as coisas que hoje… Uns cinquenta anos, digamos, para se ter uma ideia… Claro, não vale a pena fazer contas. O acaso de eu estar trabalhando aqui, não em outra parte, e cada um deles também, fez com que nos conhecêssemos por nada e arrastássemos incontáveis dias tolerando-nos a cara um do outro. E todos coubemos no tempo, que já se vai fechando outra vez, criando outra memória. Agora o que vejo… O que vejo? O que penso agora? Há coisa de meses, tinha para mim que tudo estava sob controle. Que eu estava a salvo e imune. A par de tudo, porém, pressentia que era agora, de fato, que as coisas começavam de fato a acontecer: fui convocado para uma reunião a portas fechadas com os superintendentes. Certamente não seria aquela a última vez que os homens se exercitariam no maquiavélico brinquedo de se conquistarem ou se destruírem. Só que eu não estava em posição de destruir. Nem de ser conquistado. Não estava em posição alguma.

“E agora?”, perguntou o Pradinho, amedrontado.

“Agora?”, dei de ombros. “Nada.”

61. Três dos muitos senhores do mundo. Parte 1 – sequência

59. Com Sylvia, em delicada decadência – anterior

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Imagem: Marcel Duchamp. Retrato de jogadores de xadrez. 1911.

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