Office in a Small City por Edward Hopper

E os trens funcionando perfeitamente

“De onde vem sua coragem? Você já pensou nisso?”
“Não preciso de muita coragem”, Estela com estranha naturalidade.
“Coragem não para os grandes obstáculos ou eventuais tragédias”, Júlio estreitando os olhos contra o vento. “Coragem para atravessar um dia qualquer, sabe, sem chuva nem contratempos.”

Pavel Otdelnov. Dia branco. 2006Identificava sempre o prenúncio de uma remota alegria quando encontrava Estela no café, tal como outrora se dizia nos livros em que as personagens identificavam prenúncios de remotas alegrias quando encontravam alguém. Mesmo após a noite prejudicada pela insônia. Ou rica em sonhos de péssimo agouro. Mesmo assim, os tais sintomas de remotas e quase arrepiantes alegrias talvez fossem o que o poupasse, a exemplo do jovem tcheco, de se transformar definitivamente num inseto.

“Hoje é minha vez, lembra?”

“Não, não, Júlio”, a mão dela retendo a dele. “Você pagou ontem.”

Caminhavam mais lentamente, mãos nos bolsos; cada um, a seu modo, lutando contra a pressa e o hábito, uma resistência consciente e difícil. Uma brisa muito fria parecia estar viajando em círculos, atingindo-os por um lado, depois por outro – se carregasse um grão de poeira, seria aquela uma partícula em órbita daquelas ruas, um minúsculo cometa do inverno.

“Sonhei com você a noite passada”, ela num movimento de braço que mantinha a bolsa para trás e levando a mão que acabara de tirar do bolso, gesto rápido e furtivo, pelos cabelos, sinais de que não estava pronta a dizer aquilo de maneira apenas direta.

“Comigo?”

“Uhump”, quase inaudível, valendo: verdade, pois é...

“Em que bicho você vai jogar? Não minta. Vamos, confesse.”

“Difícil decidir”, olhando-o de frente e quase sorrindo, com o tempo necessário para identificar o bicho da fortuna. “E você, com que sonhou?”

“Bom, na verdade… Tive um pesadelo e acordei sem a menor noção de onde estava. Além de ter as duas mãos enterradas nas têmporas.”

“Que maneira agradável de começar o dia.”

“Poderia ser melhor? Mas não é tudo. Quando é assim, fica meio difícil sair da cama. Não é uma preguiça comum, você entende? Meus colegas falam em motivação, força de vontade, essas coisinhas de criança. Claro, não é culpa deles, eles não sabem como é isso, não alcançam outras intensidades, por sorte. Mas isso me acontece, também por sorte, e desafia minha coragem.”

“Coragem, que palavra, hein? Acho que eu não a ouvia desde a última guerra.”

“É preciso ter coragem para sair às ruas. E a um pesadelo ainda mais estranho”, ele pateticamente, percebendo-se contaminado por algum resquício dos autores que lia, todos tão doentes de literatura. Para não decair ainda mais, passou a imitar a voz da rádio, sua reação: “Esta é a estação mais alegre da cidade. É preciso ter coragem. É preciso ter coragem, meus amigos.”.

“Que bobo.”

“De onde vem sua coragem? Você já pensou nisso?”

“Não preciso de muita coragem”, Estela com estranha naturalidade.

“Coragem não para os grandes obstáculos ou eventuais tragédias”, Júlio estreitando os olhos contra o vento. “Coragem para atravessar um dia qualquer, sabe, sem chuva nem contratempos.”

“Estou ouvindo. Continua.”

“Mesmo com dinheiro a receber. Nenhum problema de saúde. Logo pela manhã, a visão de um belo corpo feminino. E os trens funcionando perfeitamente bem.”

“É só alguma depressão. Mas não precisa se impressionar muito. Qualquer terapeuta recém-formado pode resolver isso.”

“Depressão, saturação, não sei bem. Aos poucos, perdi o gosto por coisas que antes me atraíam, mas acho que isso era necessário, necessário que acontecesse, digo. Quando vejo, numa livraria, as edições nas vitrines, nas estantes de parede e nas giratórias, penso: haverá algo que não tenha ainda sido dito?”

“Quem sabe? Por que me diz isso?”

“Sinto o mesmo com relação aos cartazes de cinema, os discos…”

“É estranho que você procure sempre o que não quer encontrar. Será que o que você procura existe?”

“Se o que eu procuro existe? Pensando assim… Não sei se o que eu procuro existe. Mas a minha procura existe. Também não sei se saber disso ajuda. Parece confuso?”

“Não muito. Que estranho… Você será tão estranho como parece?”

“Acho todos estranhos.”

“Sei. Mas isso não passa de um critério seu, não é? Você pode ver como quiser. Estranhos ou não, todos nós temos riquezas interiores, potenciais e… Não acha?”

Júlio concordou, por comodidade. Apalpou os cigarros no bolso.

“Às vezes me preocupa”, ele como se olhasse muito à frente, “que sinais assim, de exaustão e desinteresse, ocorram com tanta frequência ainda na minha idade. Mas só às vezes. Digo, só às vezes isso me preocupa.”

“Que idade?”

“Vinte e cinco, quase. Não sei se isso conta. Há pessoas que não se entediam nunca, o que é um grande mistério para mim.”

“Você parou de estudar?”

“E não vou voltar, garanto. Você, ainda estuda?”

“Não, mas penso em voltar. Mesmo na minha idade. Acho que isso não conta. Estou bem perto dos trinta, sabia?”

“Sério? Pensei que estivesse mais perto dos vinte.”

“Ahn…”, sorrindo, simpática. “Você sempre se engana.”

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

99. Advento da mancha sinistra – sequência

97. Classificados, respeitados, esquecidos – anterior

Imagem: Pavel Otdelnov. Dia branco. 2006.

por

Publicado em

Comentários

Comentar