Office in a Small City por Edward Hopper

Dois personagens sob a chuva

Liana pensa ter visto um vulto de mulher à margem do acostamento.
Não. Era o resto de uma árvore cortada.

Alfred Stevens. Um noite tempestuosa (detalhe superior). 1892Liana longamente quieta durante a breve viagem. Monotonia da estrada conhecida, a cidade logo ali, no encalço de algumas colinas suaves, despontando em torres minúsculas, de um cinzento esmaecido, como desenhadas contra o fundo de densidade uniforme, uma única capa de nuvens negras. Mas Danilo sabe o que ela pode estar pensando. Supõe que sim. Olha para ela muito sutilmente, sem mover a cabeça, o bastante para perceber que parece apática, mas também que se disfarça no limite da raiva, do destempero, de uma agressão ainda sob controle. Muito sob controle.

“Liana, por favor… Que que foi?”

Som macio do carro na estrada.

“Liana…?”

“Que foi?”, contida, sem olhar para ele. “Não sei… Não sei… O que foi?”

“Olha. Não adianta você fazer nada disso, não adianta ficar falando nisso agora, não adianta me acusar agora…”

“Agora? Acusar? Do quê? Por que agora?”, ainda inerte, sem tirar os olhos da estrada à frente.

“Que coisa mais…”

“Por que não agora? Porque o crime prescreveu, não é? Porque é tarde demais, não é?”

Ele sorri, balançando a cabeça, inconformado, por pouco não exclamando: “Mas que besteira!”.

“Você está com medo de mim, minha querida, eu estou vendo, e isso não faz sentido. Não faz o menor ridículo sentido.”

“Não estou com medo. (Mas faria sentido sim.) Fico pensando nela, em primeiro lugar. Na Ana Lúcia, em primeiro lugar. Tenho muita pena dela. Sinto algo que você não sente. Tenho muito carinho por ela. Mas não por você.”

Danilo engole várias vezes a saliva. Mais uns tantos metros, outra placa anunciando a proximidade dos limites urbanos. Mais uma contração na garganta. Que bobagem, afinal. Não precisa ter carinho por mim, então. Se o preço é esse…

“Tudo bem então”, ele diz. Uma rendição fácil.

Mas nunca é tão fácil. Ninguém aceita, sem suspeitas, uma rendição fácil.

Liana pensa ter visto um vulto de mulher à margem do acostamento. Não. Era o resto de uma árvore cortada. Sente ainda em seu corpo as vibrações do sexo recente, de uma tarde em que Danilo estava especialmente ativo. Intenso, ela chegou a pensar. Quase agressivo. Alguns movimentos se repetem como os fantasmas de partes amputadas, que parecem estar ali e não estão. Mas nesse caso é diferente, sim, ela o sente como uma vibração tardia, um mínimo latejar somado a contrações também pouco identificáveis, sumidas entre pulsações, como se estivesse sendo penetrada ainda, muito sutilmente. Talvez essas sensações se manifestem justamente porque ela está acomodada no assento anatômico do automóvel, planejado para o conforto, para o relaxamento e também, eventualmente, para o sexo. Liana já caiu na espiral entorpecida de seu transe, um estado de quase sonolência, destoante de seus olhos abertos, bem abertos, fixados na rodovia à frente, na chuva que dilui as formas. Um estado gradualmente irresistível, embalado pelo som suave do motor, pelo ruído contínuo da chuva e por seu próprio cansaço mental. Era uma mulher, sim, à beira da estrada, era uma moça encharcada, parada lá, cortada, era uma moça cortada como uma árvore cortada, como um resto de árvore, um pouco curva, um pouco triste, um resto de moça cortada. E eu aqui, neste assento aconchegante que… É um fantasma lá fora, um fantasma cortado sob a chuva, o fantasma de Ana Lúcia, ela quer me falar, ela me fala, eu posso ouvir… Você sabe. Só você sabe. Eu não sei, Ana, eu não consigo saber, eu não tenho certeza. Só você sabe. Não me deixe morrer. Eu não quero morrer para sempre. Só você sabe. Me ajude. Me ajude, Liana. Era uma árvore, uma árvore cortada. Era ela. Tenho vergonha, querida, de ter sido possuída por esse mesmo homem hoje. Não queria que você soubesse disso. Não queria que você soubesse que ainda sinto em meu corpo, em minha intimidade, até mesmo nos meus seios mordidos, as marcas do seu executor, esse homem atraente e amável, que esconde, num resumo trágico da entidade masculina, o caro amante e o dissimulado assassino. Me ajude, Liana. Estou sozinha. Só você sabe. Não me deixe morrer…

“Que frieza, que insensibilidade… Que machismo idiota… Que arma… idiota!”

A partir da última frase, Liana passa a soluçar, a contragosto, irritada consigo mesma por não poder dominar a emoção, como julgou que pudesse, inicialmente. A última palavra sai falhando, omitindo fonemas.

“Minha linda, para com isso!”

Uma série rápida de clarões intensos. Trovões desenrolando-se logo a seguir, entre murmúrios distantes, que não parecem poder alcançá-los, e pesados estrondos súbitos que explodem no descampado em torno, bem perto do carro, bem perto de onde estão. Danilo aciona o limpador de para-brisa, em maior velocidade: a chuva já não tem volta, cresce rapidamente.

“Posso falar?”, ela numa voz quase sumida, principalmente agora, com o ruído da chuva ao redor. Uma ótima aluna. Uma advogada brilhante. Uma mulher bem-sucedida. Uma menina tímida.

“Claro, minha linda. Fala o que quiser. Pensei que não quisesse… Desculpa não te olhar, estou prestando atenção aí, na estrada, essa chuva já tá ficando muito forte, tá vendo?”

O que parece se intensificar é um vento devastador que já vem atingindo a folhagem das árvores mais próximas, essa mesma folhagem que eles, à noite, bem conheciam, que iluminavam, folha por folha, com os faróis de luz alta, no caminho para o motel.

“Você matou a Ana Lúcia naquela hora, não foi?”

Danilo faz o que já vinha anunciando: fica olhando a estrada, atento à chuva, mãos bem presas ao volante.

“Você ficou arrasado, porque ela não estava nem aí com você. Você era só um carinha que ela levou pra cama, ela podia ter saído com qualquer outro e teria sido menos incomodada com aquela sua conversa apaixonada toda. E quando ela falou do outro encontro (que podia até ser mentira, você já pensou nisso?) foi só pra te fazer parar, pra te fazer parar com aquela chateação romântica de quem, implorando, se jogava aos pés dela, babando por ela, morrendo por ela.”

As mãos dele parecem fixas no volante, que também parece não ter que se mover nem um milímetro para garantir a estabilidade na estrada reta.

“Você ficou fora de si. Isso acontece. Isso acontece com todo mundo. Com todos nós.”

Porque ele não diz nada dessa vez, não retruca, não se explica, não argumenta, agora sim ela tem certeza do que o tempo todo vinha querendo saber.

“Ela não tinha irmão coisa nenhuma, você inventou isso tudo, não é? Você estava se acusando sem querer, mas nem precisava. Você matou a Ana Lúcia porque tinha ciúmes, porque sabia que ela não iria ser sua, porque você não dava conta de conquistar uma mulher inteligente e maliciosa como ela, porque…” Liana em um pranto ainda incipiente, mas já muito intenso. Até o último instante, pensou que seria forte de não declinar a isso. Mas as emoções, irrompendo, porque algo mais fora rompido, não respeitam suas intenções racionais. Me ajude, Liana. Estou sozinha. Só você sabe. E ela o acusa em voz baixa, entre um soluço e outro, demorando-se na palavra: “Assassino… Assassino…”.

“Liana! Liana, que loucura! Olha pra mim, olha aqui…”

Só você sabe. Só você sabe…

“Para esse carro. Para, por favor!”

Ele quase não reconhece a voz dela, gutural e rascante, em meio ao choro.

“Parar no meio dessa chuva louca? Que isso?! Nem pensar… Eu te contei tudo, passei por um enorme sofrimento com aquilo tudo, por ter perdido a Ana, por ter sido visto como um criminoso e…”

“Para esse carro! Para essa porra desse carro!”, agora visivelmente determinada, quase sem controle, gesticulando histericamente em direção ao dispositivo que libera a trava elétrica das portas.

“Tá bom, eu paro, tira a mão daí, é perigoso, calma.”

Mas foi só reduzir um pouco a velocidade, encaminhando-se ao acostamento, e ela já dá sinais de querer saltar porta afora.

“Espera, que isso?! Já tô parando, não tá vendo?”

“Para esse carro!”, ela repete como se ele já não estivesse avançando sobre um trecho esburacado e disforme do acostamento. Antes que o veículo consiga frear completamente, ela salta quase ao mesmo tempo em que abre a porta, pronta a correr, não sabe para onde, apenas correr, agora chorando como bem entende, fustigada pela tempestade de ventos traiçoeiros, em todas as direções. Danilo se assusta, porque entendeu que ela quisesse apenas conversar, no carro estacionado.

“Liana! Volta aqui! Que isso?!”

E vê como ela cai ao chão perto dali, logo após uns primeiros passos de sua fuga improvisada – enganada por um desnível no solo, enganada pela má visão sob a chuva e sob a lágrima, enganada por seus sapatos de mulher, enganada pelos impulsos que impedem a razão de se orientar. Danilo corre até ela, sem tempo para praguejar contra a chuva incômoda, e a pega firme pelo braço.

“Me solta!”, ela grita, sem parar de chorar. “Idiota! Idiota! O que você foi fazer?! O que você fez?!”, ainda sem controle e soluçando mais forte. “Não, não é possível…”

“Vamos embora, escuta, nós não podemos… Liana, vamos embora, vem comigo, anda. Deixa disso, menina…”

“Pensa que eu sou burra?! Esqueceu que eu sou advogada? Que eu sou advogada há doze anos? Entendeu? Entendeu, idiota? Sabe quanta coisa eu vi no meu trabalho todo esse tempo?”

“Deixa disso, para de chorar, por favor. Nós vamos ficar doentes com essa chuva gelada…”

“Pensa que me engana com essas historinhas mal contadas? E ainda diz que é escritor, que gosta de escrever, que… que…”, interrompida por seu descontrole outra vez, um pranto que não se acalma em nenhum momento, apenas se intensifica quando parece em tempo de ir se esgotando.

“Não importa o que eu fiz. Isso tudo acabou. Vamos embora, não podemos ficar aqui, desse jeito.”

“Importa sim, claro que importa!”, voz engasgada de menina ofendida. “Claro… que… importa! Idiota… Assassino…”

“Liana…”

“O que você fez comigo? O que você fez com a gente?”

“Como assim? Liana…”

Consegue, finalmente, abraçá-la. Ela está cansada. Ficam um tempo assim, Danilo protegendo-a de si mesma, protegendo-a da imagem medonha que vem fazendo dele. A chuva não diminui. O vento não se desvia. Só agora ele percebe que ela se sujou muito na queda, e um pouco de sangue mancha-lhe a mão quando ele a passa por alguma extensão de um dos braços dela, envolvendo seus ombros, suas costas.

“Nós não podemos voltar no tempo. Tudo isso passou. Tudo isso já passou. Acabou. Você vai ficar pensando tudo o que quiser. Sempre vai poder pensar tudo o que quiser. Porque eu não posso voltar lá com você, voltar ao passado. A nenhum lugar do passado. Não posso lhe mostrar nada no passado. Porque… não existe vida no passado.”

Ela se entrega ao abraço dele com o nervosismo de antes, mas agora assumindo uma fragilidade já instalada, deixando-se consolar por pouco, forçando-se a se sentir protegida, de qualquer maneira que seja, não importando o que ele diga.

“Que bom que eu não tenho que viver de novo tudo o que sofri com as meninas que de alguma forma se envolveram comigo. O que eu sofri por minha própria culpa, aliás. Por causa da minha própria estupidez. Que bom que eu não tenho que passar por aquela tragédia toda de novo. Liana… Escuta. De todas as mulheres que eu conheci, você é, sem nenhuma dúvida… sem nenhuma dúvida… a minha maior chance.”

Olhando-a de frente, o rosto sujo que não olha para ele, que conserva ainda a careta de choro, os olhos baixos, mirando o chão. Beija-a na testa.

“Liana… Não vá embora de mim. Vamos embora juntos. Meu amor.

Danilo se volta, mirando a estrada. Um carro de faróis acesos estaciona no acostamento, logo atrás do carro dele, que tinha ficado ali, as portas escancaradas e os faróis também ligados. Talvez tenham vindo para resgatá-los de si mesmos.

Marcas de gentis predadores

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Guia de leitura

Imagem: Alfred Stevens. Uma noite tempestuosa (detalhe superior). 1892.

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