Office in a Small City por Edward Hopper

Dispensando a musa

Que não se referia, afinal, a uma guerra qualquer, mas ao meu próprio massacre.
O herói extraviado. Os livros. Meus registros.

Todd Krasovetz.

Cadernos (II) – por que romanos?: 2

Newton considerava perdido todo tempo que não fosse dedicado ao conhecimento, à ciência. Borges ficou cego; Beethoven, surdo. Bach e Kant moraram em cidades pequenas e raro viajaram. Mozart e Van Gogh apenas trabalharam e morreram. Mishima suicidou-se em público. Espinoza passou a vida como polidor de lentes, e Humason, um condutor de mulas, descobriu, com Hubble, que o universo estava em expansão. Depois disso, que espera de mim o Arcádio Raposo?

Em meus textos, procurei ser realista, recriando-me sem perder de vista o conceito indivíduo-cidadão-gente, que o mundo não está mais para gênios, agora, quando melhor se conhecem as circunstâncias e fatores que propiciam a formação e o surgimento deste ou daquele talento, pois há muitos, também evitando-se, assim, o risco de que se dê comigo a pior coisa que pode acontecer a um artista: tornar-se um mito. Claro que isso não é tudo. Acontece que tenho muito medo da morte, o que poucos ousam confessar. Mas a morte é apenas o fim, e este passa a ser um medo infundado, desnecessário. Paradoxalmente, por estar ciente de tal evento, registre-se, absolutamente natural, registre-se também, perdi o medo de muitas outras coisas. Não tenho medo de agir como quero nem de dizer o que penso, quando decido que vale a pena dizê-lo. Também não espero que me sigam, pois mudo de ideia como bem entendo. Não tenho medo de parecer incoerente. Ou de conceder-me liberdade. Não tenho medo de nada.

Um ruído no quarto de baixo. Depois, um cão distante. Buzinas periodicamente, também distantes. Os ruídos noturnos impressionam-me por sua casualidade e principalmente porque assim como são é que são, e por isso não são diferentes. Isso faz pensar em como tudo o que ouvimos, também o que falamos, claro, durante toda a vida, é casual e imprestável, ainda que nos agitemos sempre com a confortadora ilusão do propósito. Fernando Pessoa escreveu que mais valia saber passar sem desassossegos grandes – justamente o que ele não fez.

Eu relia com desgosto o que redigira na noite anterior, sentia-me impotente e quase surpreso por reconhecer-me autor de tais rascunhos. Quase não podia enxergá-los como textos – algo à semelhança do teólogo Melanchton, cujas páginas, trabalhadas à noite, amanheciam apagadas, porque ele as não havia escrito com convicção.

Do massacre, restou uma velha bandeira.
A relva cobriu os cadáveres sujos,
o sangue desceu às entranhas da terra em silêncio.

Na memória dos livros,
figuras e datas
cuidaram de guardar os heróis e os crimes:
– entre as páginas de um vasto volume
envelheceram todas as guerras.

Mas, tanto quanto com as estações do ano, cuja permanência e revezamento eu agora mais bem pressentia, deparava também com a curiosa suspeita de que tudo aquilo apenas tratava de mim mesmo. Que não se referia, afinal, a uma guerra qualquer, mas ao meu próprio massacre. O herói extraviado. Os livros. Meus registros. Os versos que desafiavam a encontrar outras respostas eram os mesmos que até então eu compunha com absoluta ignorância, como faltasse ainda a chave para abrir outra temporada de meu amadurecimento e de minha miopia. Faltava que eu acreditasse em mim. Pelo menos isso – porque, no resto do mundo, eu já não apostava muitas moedas.

O fato de escrever em primeira pessoa revela, segundo creio, um certo egocentrismo, tanto prejudicial ao indivíduo quanto ao autor, embora seja ainda uma de minhas opções favoritas. O indivíduo, desde que não se importe em mostrar-se ridículo, nada tem a ganhar com tal doença – chamo-o assim sem nenhum conhecimento científico, mas só porque quero acreditar que tenha cura. Quanto ao autor, de um lado livre para dar corda às suas opiniões, ao seu fluxo de pensamento, supondo ser a sua cosmovisão das mais acertadas, a ponto de publicá-la para que outros menos privilegiados a absorvam, fica também mais limitado que seu colega adepto da terceira pessoa, pois principalmente abre mão da proveitosa onisciência e não pode participar do movimento interior dos outros personagens senão por via de suas próprias observações, tanto as externas quanto as de caráter aparentemente profundo. O autor primeira-pessoa sente-se uma espécie de senhor do mundo, e não o divide com a visão alheia, que seria, entenda-se, a dos outros personagens participantes. Por isso deve ser que os ingleses há muito usam obrigatoriamente a maiúscula quando se trata do pronome pessoal do caso reto correspondente à primeira pessoa do singular, traduzindo, eu: porque sempre acreditaram e apostaram que, durante muito tempo, tudo começaria e acabaria por eles.

Eu mantinha minha velha vodca barata enquanto escrevia noite adentro. Após um leve estado de embriaguez, tinha a impressão de que podia conversar com os insetos que se aproximavam da luminária, não propriamente por conta de minha pretensa superioridade humana, ao contrário, imaginava comunicar-me com eles, quase podia sentir-me como eles, todos nós vivos em nosso próprio tempo, buscando, cada um, luz à sua maneira. Com tais evidentes associações…

Não posso mais. É preciso definir meus projetos. Ninguém pode escrever um livro fragmentado sem ao menos uma linha mestra. Que posso fazer de linha mestra? Um romance com a cara de Mônica? Com a cara de Verena? Aliás, só acredito na literatura, tanto quanto em qualquer outra arte, como um instrumento de subverter o mundo, a mentalidade das pessoas. É preciso ter coragem e assumir qualquer ousadia apenas apregoada por outrem, desde uma simples palavra que em princípio se afigura grosseira, mas que, na verdade, constitui um bravo exercício de atrevimento. De resto, mais me interessa o corpinho conhecido de Mônica. Sua bocetinha. Sua maneira de ser.

Arcádio Raposo, se bem me lembro ou mal me recordo, pediu-me certa vez que criasse um romance sobre as máfias da corrupção em nosso país, assim teríamos um texto sempre atual. Mas o assunto não me interessou muito naquele tempo, além de que isso demandaria alguma pesquisa, eu correria o risco de me envolver com pessoas perigosas, e esse era o tipo de coisa que eu menos queria, que não me agradava a ideia de morrer por nada, pois a corrupção prosseguiria muito bem sem mim, embora a vida, mesmo por essa época, não me parecesse nada lá aquelas coisas.

Alguém talvez risse, ou não risse, ou chorasse, ao sentir, com a mesma intensidade que às vezes me arrebata, que todas as situações trágicas ou patéticas são protagonizadas por sombras breves que só uma vez se manifestam para tornarem ao nada de onde saíram. Sem dúvida, estou perdendo o… Estou perdendo a… Melhor retomar amanhã.

65. Autocondenação e conflitos continuados – sequência

63. Mais um papel contra o vento – anterior

Guia de leitura | Sobre o livro

Imagem: Todd Krasovetz. Sem título.

Comentários

2 respostas para “Dispensando a musa”

  1. Avatar de Perce Polegatto
    Perce Polegatto

    É isso mesmo, Lídio. “A seta de Verena” é metalinguístico, um jovem escritor escrevendo um livro que nunca termina. O romance é dividido em cinco partes, trata da desastrada rotina de um escritor em crise e sua revisão de valores. A primeira parte apresenta um panorama de sua realidade e os sintomas de que algo radical se engendra gradualmente para revelar-se ao longo do texto e de sua vida. A segunda e a quarta partes são um compêndio de seus textos inacabados – e se chamam Cadernos (I) e Cadernos (II). O personagem autor, questionando elementos tradicionais, se pergunta no próprio título: “Por que romanos?” – por que temos que continuar obedecendo a isso?

    A história toda começa aqui:
    https://www.percepolegatto.com.br/2011/11/06/a-seta-de-verena-abertura-1/

  2. Avatar de Lídio Selenense

    Perce: O nome do capítulo seria “Dispensando a Musa”. Logo embaixo do nome, o que parece subtítulo, ou título substituto, mais uma anotação provisória, não retirada: “Cadernos (II) – por que romanos?: 2”. Não sei se entendi.

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