Office in a Small City por Edward Hopper

Diversos caminhos do asfalto

Jegue não pôde dormir nessa noite. Tentou passar ao cão, em sua linguagem simplória, toda a felicidade que sentia, sabendo que terminaria seus dias em paz, antes de partir para o novo mundo.

Rosa Bonheur. Cabeça de Burro. 1881.

Jegue vivia só para trabalhar. Condenado a conduzir uma velha carroça pelas ruas da cidade muito movimentada, escravizado por seu proprietário, homem rude que não hesitava em sangrá-lo com o chicote durante os árduos percursos. Velho e cansado, habituado aos maus-tratos, o burro suportava com resignação o seu destino, tendo como consolo a certeza de que um dia tudo encontraria seu fim, seu silêncio – então ele descansaria para sempre, simplesmente por não mais existir.

À noite, amarrado à árvore ressequida no terreno onde o lixo se acumulava e os carrapatos afloravam, ruminava o ranço de suas solidões. No inverno, os ventos do descampado gelavam-lhe os ossos, atormentando suas poucas horas de sono. Quanto à árvore, esta nunca florescia. Revezavam-se as estações, e os galhos estéreis não arriscavam dar à luz um botão sequer. Jegue não tinha esperanças (por que teria?) de que ela se copasse o bastante a dar-lhe sombra no verão ou abrigo contra as chuvas.

Numa dessas noites, passou pelo terreno um cão sujo e magricela que andava a fuçar o lixo à cata de restos de comida. Notando que o burro chorava baixinho, aproximou-se com grande curiosidade.

“Que houve, Jegue?”

“Minha vida não vale nada”, soluçou o jumento. “Sou um desgraçado que nunca deveria ter nascido. Todo o meu sacrifício é vão. Dou meu suor e meu sangue por uma mísera ração diária que só me dá forças para continuar trabalhando e trabalhando. Passo meus dias sob arreios e cabrestos, de sol a sol, puxando a carroça para bem de meu dono, que em troca me açoita e maltrata. Nem uma palavra de apoio ou gratidão. Sou um prisioneiro, um escravo…”

O cão, ouvindo aquilo, entristeceu também. Comoveu-se com o sofrimento do outro e encheu-se de piedade.

“Não há mal que sempre dure”, disse ele repetindo o velho ditado. “Um dia você se aposenta, seus problemas terminam.”

“Não existe aposentadoria para mim”, falou o burro. “Não há férias nem licenças. Só tenho folga quando meu patrão entende que preciso repor minhas energias para continuar o trabalho. Agora que estou velho, vejo que não há saída. Quando era jovem e forte, tinha esperanças. Mas enfim todos os sonhos se foram.”

“Talvez aconteça algo”, arriscou o cão.

“Não, Cachorro. Não adianta esperar por milagres. Quando era jovem e cheio de planos, pensava que a vida era mesmo maravilhosa, mas tudo o que encontrei foram cabrestos e fivelas, arreios e chicotes. Naquele tempo, eu dispunha de energias, revoltava-me contra meu patrão, teimava, escoiceava, empacava. Pensava em derrubar a carroça para sempre. Mas logo entendi que não seria possível. Eu não teria para onde ir, pois ela era, e ainda é, meu único meio de conseguir capim. Na cidade, crescem edifícios e fortalezas, é a lei do concreto. Se fugisse, logo me encontrariam. Estou velho, minha vista é fraca. Meus dentes apodreceram, meus sonhos ruíram. Não me resta senão continuar arrastando a carroça pelas infinitas avenidas, longe de minha terra e de minha juventude, cercado por motores ruidosos, sob o sol causticante, e açoitado por meu ingrato proprietário. Você, sim, é feliz, Cachorro. Ganha o alimento em troca de sua inteligência. Os homens lhe dão carne porque brinca com as crianças, vigia a casa, abana o rabo quando os vê.”

“Não é como parece, Jegue”, contou o cão coçando uma orelha. “Olhe para mim. Vivo revirando o lixo por um miserável osso. Nem sempre a inteligência provê comida ou bem-estar. Apesar de tudo, sou feliz por ser livre. Os homens me desprezam, apedrejam e expulsam. Mas acho que não gostaria de ser diferente. Pena que eu seja muito pequeno para ajudar você. Mal posso cuidar de mim mesmo. Agora preciso ir. Estou tomando suas horas de descanso.”

“Não, Cachorro. Fique. Troco minhas horas de sono por sua amizade. Sou muito solitário, é bom ter alguém para conversar.”

O cão ficou ali até que o burro adormecesse, vencido pela fadiga.

Toda noite o vira-lata voltava trazendo notícias do mundo. Passou a acompanhar a carroça durante o dia, tornando-se grande amigo do sacrificado Jegue. No início, o carroceiro tentou espantá-lo com o chicote, mas logo entendeu que era pequeno, inofensivo, e passou a ignorá-lo. Cachorro contava a Jegue casos e anedotas que ouvia dos homens, e isso o ajudava a distrair-se da injusta realidade.

Uma noite, Cachorro chegou alvoroçado, ares de grandes novas.

“Onde esteve?”, indagou o burro, que não o via desde a manhã.

“Tenho andado entre os homens”, disse o vira-lata. “Trago boas notícias.”

“Conte logo então.”

“Ouvi sobre um lugar maravilhoso, muito além desses pobres horizontes. Lá não há escravos, pois não há senhores. Não há dor nem cansaço, não há carroças para se puxar. Não há capim e não há fome. As árvores são copadas e florescem. Todos são livres e felizes, todos amigos!”

“Com os diabos, onde fica esse lugar?”

“Não sei. Mas em outro mundo.”

“Que mundo? Só existe um mundo, e é o nosso.”

“Com os olhos, a gente não vê. Disseram que está dentro de nós.”

“Ficou louco, Cachorro? Como pode um mundo caber dentro de nós?”

“Não é assim, Jegue. Ele só existirá se você acreditar nele.”

O burro acabou se convencendo.

Nos dias seguintes, o cão contou-lhe mais coisas maravilhosas que o esperavam no outro mundo. Pássaros livres, fora das gaiolas. Peixes sem aquário, nadando em lagos imensos. Cães sem coleira, burros sem arreios, só paz e felicidade.

“Que beleza, Cachorro! Como é bom ouvir isso! Sou muito feliz, agora que sei da verdade. Enfim, após todos esses anos, encontrei razões para viver. Sinto que meu tempo está se esgotando, e esse mundo está próximo. Meus músculos estão fracos, as juntas estalam, as costas já não resistem, como antes, à chibata. Mas sinto-me imensamente feliz! Você me trouxe sonhos outra vez, Cachorro. Sua amizade tem sido um prêmio para mim.”

“Não deve me agradecer só porque lhe contei do que virá depois. Na verdade, não pude fazer nada de concreto por você.”

“É maravilhoso saber! Agora, cada gota de meu suor no asfalto devolve-me flores. Quando ouço o silvo do chicote, ouço música também. Em lugar da árvore seca onde me amarram, vejo as estrelas, que antes eu não notava. Tudo ficou diferente depois de você.”

Cachorro confirmava a amizade correspondida como sua melhor recompensa.

Pouco se passou até a noite em que o cão chegou correndo, entusiasmado.

“Onde esteve?”, perguntou o jumento, que não o via desde a manhã.

“Tenho andado entre os homens”, disse o pulguento. “Trago ótimas notícias para você!”

“Conte logo então.”

“Ouvi seu dono conversando com outros carroceiros. Eles negociaram, discutiram, pechincharam. Por fim, apertaram-se as mãos e fecharam o negócio.”

“É natural. Eles estão sempre negociando.”

“Você não ouviu tudo. Seu dono comprou um novo jumento e vai libertar você amanhã.”

“O quê?! Tem certeza?”

“Ouvi perfeitamente o que diziam. Tudo, tudo.”

Os olhos do burro brilharam de emoção e felicidade.

“Também sei onde você vai morar. Fora da cidade, não muito longe, há uma propriedade às margens da rodovia. Para lá é que vão levá-lo.”

Jegue não pôde dormir nessa noite. Tentou passar ao cão, em sua linguagem simplória, toda a felicidade que sentia, sabendo que terminaria seus dias em paz antes de partir para o novo mundo.

No dia seguinte, foi dirigido a um itinerário diverso que o de costume. O cão confirmou:

“Sim, sim! Conheço os diversos caminhos do asfalto. É este o caminho que leva à rodovia. Alegre-se, você está quase livre. E o sol desta tarde lhe mostrará uma sombra sem arreios.”

Jegue estava feliz, mas cansado, que quase nada dormira na noite anterior. Ainda assim, o desejo de ser livre duplicava suas forças. A simples lembrança de que faltava tão pouco o encorajava a trotar mais e mais rápido, rumo a seus novos horizontes. Seu coração pulsava intensamente. Era uma surpresa milagrosa e inacreditável.

Já haviam percorrido quilômetros quando o cão tornou a falar.

“Vamos chegar logo, Jegue. Estamos perto.”

“Eu sei, Cachorro”, arfou o asno. “É impossível dizer com palavras o que sinto agora. Tenho pena do burro que terá de puxar a carroça em meu lugar.”

“Eu também, Jegue. Mas nada podemos fazer por ele agora. Pense em sua própria liberdade e no destino tranquilo que o espera.”

Longas avenidas. Ruas esburacadas. Becos assimétricos, travessas tortas. Por fim, alcançaram o subúrbio.

“Falta pouco agora, Jegue.”

Jegue não respondeu. Queria poupar energias, fechar o percurso em menos tempo. Suportava sorrindo os golpes da chibata, tendo em mente que seriam os últimos sobre o lombo muitas vezes cicatrizado. Últimos passos cativos, últimas gotas de suor, carroça e carroceiro pela última vez.

Estava exausto quando deparou-se com um aclive cuja perspectiva parecia não ter fim. Olhou desanimado para cima, encheu-se de coragem e pôs-se a subir vigorosamente.

“Força, Jegue! Conheço este caminho. Depois da subida, é só passar umas quadras, e acabou-se.”

O burro subia e subia, cada passo uma grande conquista. O coração disparava, o sangue batia veloz, querendo estourar as veias num esforço monstruoso. A cada metro, a carroça pesava mais e mais. Olhando ainda uma vez para cima, considerou a ladeira, ainda pela metade. Prosseguiu. Dava um sacrificado passo à frente, mas não conseguia manter-se em equilíbrio. A carroça tendia a descer, forçando-o a recuar sob seu peso.

“Não posso mais, Cachorro”, arfou desesperado. “Não posso mais…”

“Mais um passo, Jegue! Outro… Isso!”

Por mais que se esforçasse, não fazia senão avançar um passo e vacilar dois. O carroceiro, impaciente, usou várias vezes o chicote. Jegue o ouvia sibilando no ar antes de cair cortante e imperioso sobre seu velho lombo cansado.

“Anda, animal imprestável!”

“Força, Jegue! Não desanime agora.”

O coração bombeava sangue furiosamente por todo o corpo. As pernas tremiam, fazendo-o vacilar para um lado e outro, o ar entrava e saía com força, arranhando-lhe a garganta seca.

“Não posso mais…”, suspirou. E caiu pesadamente.

O carroceiro ficou furioso e aplicou-lhe o chicote com violência.

“Levanta, maldito animal! Só me faltava essa! Levanta, estúpido!”

Jegue suportou as chibatadas com resignação, sabendo que seriam as últimas, e não mexeu nem um músculo mais. Ficou estirado, tombado no meio da rua, ao som do tráfego subitamente congestionado. O carroceiro foi ter com o guarda do quarteirão, que viera a fim de obrigá-lo a remover a carroça dali. O cão aproximou-se do amigo e lambeu seu rosto.

“Eu quase consegui, Cachorro…”

“Não importa, Jegue”, murmurou o vira-lata de olhos umedecidos. “Agora você está livre. Agora pertence àquele mundo de que tanto falamos.”

“Cachorro…”

O cão chegou mais perto para ouvir o fio de voz.

“Obrigado por todos os sonhos.”

“Não são mais sonhos, Jegue. São a sua realidade agora.”

“Prometa-me uma coisa, amigo.”

“Sim, Jegue.”

“Encontre o burro que tomará o meu lugar e conte a ele sobre aquele mundo maravilhoso.”

“Farei isso, amigo. Contarei também sobre você, e nunca mais o esqueceremos.”

Outro suspiro, e o burro tombou a cabeça definitivamente. Em seu rosto, a sombra de um sorriso.

“Acabou-se, amigo”, disse o cão também num fio de voz.

Mas foi logo enxotado por meninos curiosos que se acercavam da velha carroça. O guarda discutia com o carroceiro e ameaçava multá-lo. As pessoas desciam irritadas de seus carros, procurando o responsável por tamanho transtorno. O cão, este seguiu sozinho o caminho de volta, lembrando que à noite encontraria outro burro, jovem e robusto, amarrado à árvore que nunca florescia.

Esta fábula é o texto de abertura da coletânea A canção de pedra, publicada em 1985.

1a versão, 1982. 2a versão, revisada, 1989.

Leia mais de A canção de pedra: Lauro e o monstro

Imagem: Rosa Bonheur. Cabeça de burro. 1881.

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