Office in a Small City por Edward Hopper

Lisette Maris. Damares (2/15)

Seria capaz de qualquer sacrifício para que essa manhã jamais terminasse.
Damares olha-me de frente, e seus olhos atiram-me uma lâmina de luz.

Hans Purrmann. Natureza-morta. 1908A gárgula de caninos dourados prenuncia as presas ruidosas que investem contra a grade do jardim. Uma criada inexpressiva aconselha que eu entre pelo portão lateral. Damares mora nesse sobrado razoavelmente luxuoso, mas que também não é a oitava maravilha mais antiquada do mundo. Cozinha: copa: antessala: corredor: a criada, que nunca me olha nos olhos, informa que ela está ouvindo música na saleta contígua, a das almofadas. O cão, do qual suponho estar livre, entrou certamente por outra porção de seu conhecido labirinto e ataca-me tão logo avisto Damares pela porta aberta. Ela se ergue da almofada.

“Papa, não faça isso!”

O cão não lhe obedece. Abocanha meu punho contraído e surpreendentemente se detém, como se algo o houvesse paralisado. Ergo o braço, o punho cerrado entre suas presas, ele se permite içar, mantém-se suspenso e oscilando, com o peso dos enforcados.

“Papa, que coisa feia…”, diz ela ao aproximar-se. “Não sabe que é meu convidado?”

Com um gesto habilidoso, desarma-lhe as mandíbulas, livra-se do mastim. Ele ainda rosna, mas sai pelo corredor. Damares sorri de encontro a meus olhos, e o cão rosnando a distância empresta-me que essa engrenagem atravessa também os dentes de seu sorriso: Damares rosnando surdamente, sorrindo em silêncio. Seu sorriso, aliás, pela primeira vez endereçado a mim, pareceu-me dividido em duas fases distintas, quase imperceptíveis: a primeira metade abrindo-se como uma cortina apresenta o dia, outra derivando a uma consideração velada e faiscante, como uma centelha. Blusa larga de inverno, calça justa, pés descalços sobre o carpete, assim emerge Damares dessa sala de almofadas.

“Desculpe a cena”, ela diz. “Meu pai é muito impulsivo e não compreende perfeitamente uma situação.”

Acho seu rosto um pouco largo no maxilar, a boca e os olhos não ajudam muito nessa duvidosa simetria. O nariz parece afilado demais em relação ao conjunto. Orelhas disfarçadas sob os cabelos mal escovados. Que mais? Eu a acho muito bonita.

“Então? Foi difícil encontrar a gárgula?”

“Não. Ela tentou me morder.”

“Ah, não fala assim, porra. Gostei muito de você ter vindo.”

Acomodo-me sobre uma almofada. Damares baixa o volume do aparelho. Gosto muito quando ela diz palavrões. Arrepio.

“Você mora naquela caravela perto da avenida, não é?”

“É uma escuna. Lisette Maris.”

“Como sabe se é uma escuna?”

“O mastro de vante tinha uma vela latina quadrangular, e o mastro de lúgar tem altura relativa à inclinação do antigo gurupés, que já apodreceu.”

“Ahn…”, diz Damares, sempre atenta a meu nervosismo. “E como é morar lá?”

“Bem… Não é a oitava maravilha mais mal planejada do mundo, mas o meu quarto é aconchegante no inverno. Temos um salão para as sessões. Dormitórios para hóspedes. Além de um sótão para as relíquias.”

“Relíquias? Muitas?”

“Não têm valor para os outros. Quadros. Discos. Livros. Esboços de grandes mestres, raríssimas gravações ao vivo, livros com dedicatória do autor em seu próprio idioma. Ainda guardamos uma série de diários de bordo que meu avô mantinha sistematicamente, e que ninguém continuou depois da sua morte.”

“Interessante. Por que nunca me contou isso na escola?”

“Você não precisava saber. Ou teria perguntado.”

A criada nos traz torradas, bolachas, biscoitos, leite, café, chocolate, chá, manteiga, margarina, iogurte, geleia e um pote de formicida. Damares pede que ela volte e leve o pote.

“Já lhe disse que não deixe isto na mesma prateleira”, adverte em tom amável. “A senhora pode confundir-se.”

A criada se desculpa e se retira, sem nunca deixar ver seus olhos.

“Por que ela nunca nos olha de frente?”

“É cega.”

Damares estende-me a xícara, pede que eu escolha.

“Sempre ouvi dizer que os deficientes compensam suas limitações com uma grande vontade de viver. Essa mulher me pareceu triste, enfraquecida…”

“Ela tem câncer. Mais açúcar?”

O chocolate quente lembra o inverno em minha infância, não me ocorre em que idade. Naquele tempo eu acreditava que o inverno era uma estação breve e passageira, que durasse uns cinco anos, no máximo. Na sala das almofadas, o fio de vapor que sobe da xícara e a morna proximidade de Damares mantêm-me como suspenso numa bolha de calor ameno, um lapso do inverno, longe das ruas geladas dessa manhã solitária. Observo secretamente a forma de suas mãos, de agradáveis proporção e delicadeza, os pés de uma alvura própria ao afago, digo a ela que seria capaz de qualquer sacrifício para que essa manhã jamais terminasse. Para que tornasse a vê-la à margem dos outros. Sonhar com seu rosto próximo, sorriso de velas esplendentes, sol de uma primavera possível. Damares olha-me de frente, e seus olhos atiram-me uma lâmina de luz.

“Você seria capaz de lutar com meu cão?”

 Lisette Maris em seu endereço de inverno (2/15)

Lisette Maris 3. Persistência do inverno – próximo

Lisette Maris 1. A escuna ancorada – anterior

Guia de leitura

Imagem: Hans Purrmann. Natureza-morta. 1908.

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