Office in a Small City por Edward Hopper

Américo Cabral assombra em vida

Diógenes pensa: a morte é um castigo? Ou um prêmio?
Não, não. Pare, vamos parar tudo. Tudo, agora mesmo. O que é isso? Mal o assassino aparece, começa a filosofar?

Frank Mason. Primavera.A bárbara violência sexual de que fora vítima Virgínia Morais

O editor pediu-me pelo menos um crime ou uma cena de sexo ardente. Pessoas que leem romances são cultas e se interessam muito por isso. Não sei se quero continuar. Mas encontro-me numa situação difícil. Não posso escolher muito, companheiro.

Sem que o Arcádio Raposo soubesse, consegui fazer contato com uma grande editora, que aceitou, ao menos, conceder-me uma breve entrevista, possivelmente também uma oportunidade. Mas não para o que eu tinha em mente. A ideia era outra. Fui apresentado a um rapaz de minha idade, que me conduziu a uma sala à parte e fechou a porta.

“Você é professor de Gramática, não é?”

“Gramática, Literatura”, menti. Deve ter havido alguma confusão, ele talvez atendesse muitos como eu todos os dias. Quase acrescentei: História, Geografia. Jardinagem. Natação. Eu estava mesmo muito bem disposto.

“Ah, perfeito”, concluiu o rapaz, por força do hábito.

Ele abriu uma maleta sobre a mesa.

“Sabe como isso funciona, não é?”

Tive vergonha de confessar que não.

“Sei.”

“Estamos preparando um novo romance de Américo Cabral, a ser lançado no próximo semestre. Nossos redatores estão trabalhando a todo vapor. Se você se sair bem, podemos integrá-lo à equipe. Claro, estamos correndo um pouco. Mas, no próximo projeto, quem sabe, teremos algo mais definido.”

“Américo Cabral?”, perguntei como se pensasse em voz alta.

“O próprio. O grande. O maior sucesso editorial das últimas décadas”, ele com um sorriso rápido, logo tornando a desviar os olhos, mirando sempre a mesa e os papéis, como até então vinha fazendo.

 “Não sabia que ele ainda… Deve ter perto de uns… noventa anos, não é isso?”

“Noventa e três. Nós escrevemos por ele, como você já sabe.”

“Claro”, gaguejei, fingindo ao máximo que não me surpreendia. “Eu compreendo que uma pessoa, depois dos noventa…”

“O quê?”

“Que depois dos noventa, a gente deve perder um pouco, quem sabe, a vontade de…”

“Ele não escreve mais desde os trinta e poucos anos. Desde que o seu terceiro romance, O misterioso assassino da Avenida República, vendeu como água para beduínos. Você e eu nem éramos nascidos, claro.”

“Foi o que pensei”, disse eu, para disfarçar.

“A editora paga por sessenta páginas mensais, entende? Com uma equipe de dez redatores, pode-se calcular um romance de seiscentas páginas a cada mês. Ou dois de trezentas. Revezando os autores. Teoricamente, claro.”

“Claro”, eu repetia.

Ele sempre usava esse claro. Só para mim as coisas não pareciam tão claras, mas que fazer? Imaginei o que seria o produto de dez redatores trabalhando como escriturários, forçando-me a acreditar que poderia resultar disso um romance. Teoricamente. Eu esperava que o pagamento não fosse também teórico.

“Ou três de duzentas”, disse eu, tentando ser engraçado. “Seis de cem…”

“Naturalmente”, disse ele, remexendo uns tais papéis na maleta. Nem me dava atenção.

“Sessenta de dez”, disse eu, já sem alegria.

“Perfeito, perfeito.”

“Cem romances de seis páginas cada um”, murmurei, cada vez mais triste.

“Você parece muito bom em aritmética.”

Calei-me com um pigarro. Melhor não provocá-lo muito, ficar de bico fechado, pelo menos por uns minutos. Eu estava interessado na experiência, na oportunidade em si mesma, não só no dinheiro.

“Claro que isso será um primeiro teste. Os leitores avaliarão sua fluência, sua… Eh… Ahn… Seu estilo e… Eh… Enfim…”

O misterioso assassino da Avenida República vendera, segundo os números e a história, como camisinhas em tempos de aids. Houve edições de bolso e encadernações luxuosas para bibliófilos. Como com as camisinhas, não pôde evitar as epidemias: imitações, sequências, partes dois, três, retornos: a corrida do ouro.

“Nada como um povo que lê, não é mesmo?”

“Claro, claro.”

A julgar por sua idade, Cabral logo descobriria a morte. A editora viveria outra de suas fases douradas, publicando a coleção de sua obra completa, mais a obra póstuma, suas memórias, opiniões, excertos de novelas inacabadas, como também novelas inacabadas na íntegra, artigos avulsos, frases, correspondência e lista de compras. Alguém estaria lendo um desses livros no metrô. E eu, outra vez voltando para casa, entre as grandes esfinges do que jamais compreendo.

Bem, vamos ser práticos. Minha parte: eu tinha de desenvolver duas cenas (cenas?) com limite de páginas. (Ele dissera cenas mesmo.) Na primeira, deveria colocar-me na pele do assassino que eles chamaram Diógenes. Pois é. O nome já estava escolhido, não é bom? Por que Diógenes? Não era aquele que saía com uma lanterna à procura de um homem de verdade? – eu, à procura de um homem de verdade, à procura de um escritor de verdade? Não podia me deter nisso, claro. Claro. Diógenes está à janela. Matou um homem. Tem 45 anos. Não, 56. (Não me lembro de ter sido comunicado sobre a idade do personagem, portanto…) Diógenes pensa: a morte é um castigo? Ou um prêmio? Não, não. Pare, vamos parar tudo. Tudo, agora mesmo. O que é isso? Mal o assassino aparece, começa a filosofar? Comecei a duvidar de minha capacidade. Comecei, francamente, com aquele gostinho dos tristes, a duvidar de minha capacidade. Américo Cabral não divagaria assim nem tentaria aproximar o personagem de seus pares em algum romance russo. Acho que ele nem sabia que existiam romances russos. Américo Cabral queria que os russos e a literatura se fodessem. Era um escritor de sucesso, best-seller nacional, respeitado como celebridade, milionário… – quem iria lhe ditar o que fazer?

69. Querida, eu posso escrever tudo – sequência

67. Por onde as pessoas vivem… – anterior

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Imagem: Frank Mason. Primavera.

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