Office in a Small City por Edward Hopper

Lisette Maris. Enquanto temos carne, ossos… e sangue (5/15)

Os cabelos soltos escondem-lhe o rosto de perfil, cílios trazendo um último reflexo da íris. É mesmo o que vejo?
Damares é especial, e isso me corrompe.

Lygia Clark. Bichos. 1960“Compreendo que poucos podem ser livres dos Evangelhos, menos ainda poderiam considerar a vida com outra maturidade. Mas Karl Allen não ajuda muito, se é que me entende. Haller, no século dezoito, já havia demonstrado que os nervos conduzem as sensações ao cérebro, ao contrário do que se acreditava na época: que eram ocos e habitados por algum espírito circulante. Não tento influenciá-los, sabe? Eles são todos muito velhos. Basta o que conquistei para mim, secretamente. Acha que estou me perdendo?”

“Não me importa que se perca”, diz Damares servindo-me mais leite. “Não se faz nada sem algum desvio. Até admiro você por não entrar na deles. Cacete, como isso é raro!”

Ela nunca se desculpa pelos palavrões. Isso me desperta uma estranha felicidade. Arrepio.

“Tento convencer meu pai: a natureza não é uma manifestação de Deus, ela é sua própria manifestação. Deus é o que você quiser. Um anão amarelo, azul ou anêmico.”

“Diz isso a ele?”

“Às vezes. Quando sinto que não está disposto a me atacar.”

Seus pés descalços afagam o carpete felpudo e uma ampla almofada à nossa frente. Gosto de observá-la enquanto distraída. Os cabelos soltos escondem-lhe o rosto de perfil. Vejo a ponta do nariz, a linha do queixo, cílios trazendo um último reflexo da íris. É mesmo o que vejo? Damares é especial, e isso me corrompe.

“No fundo ele quer que eu acredite que os cientistas, os filósofos e os santos são pessoas formidáveis. A oitava maravilha da humanidade, como você diz. E que os militares arriscam a vida por nós.”

“Você resiste ou reage a isso?”

“Não resisto.”

“E o que ele diz?”

“Vai me mandar de volta à terapia.”

Fala de cabeça baixa, quase sem esperanças. Mas sempre sem medo.

“Papa não entende quando lhe digo que não se trata de uma revolta minha ou de nossa geração, mas do espírito humano. É preciso que as coisas aconteçam. Enquanto temos carne, ossos. E sangue.”

De alguma forma, o pai está sempre presente. Ouço-o rosnando em alguma parte da casa. Deve ter acordado há pouco e nem sabe que estou aqui. Por sorte. Quero crer que não seja ele o oitavo cão mais ridículo do mundo.

Lisette Maris em seu endereço de inverno (5/15)

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Imagem: Lygia Clark. Bichos. 1960.

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