Office in a Small City por Edward Hopper

Sonho 1664. Hotel em outro lugar

Não sou dado a sinais misteriosos ou aparentemente sinistros. Considero a realidade como ela se apresenta, com praticidade, sensatez – por vezes, até com bom humor.

Clyfford Still. Sem título. 1954Agradou-me a primeira sala, onde se dispunham um sofá, mesa de centro, duas poltronas convidativas e umas plantas artificiais. Estranhei o aviso pregado à porta pelo lado de dentro, porque, em vez da costumeira relação de itens informando as normas da casa, lia-se, em maiúsculas, uma curiosa mensagem: CUIDADO. VOCÊ ESTÁ EM OUTRO LUGAR.

Deixei a porta aberta, fui conhecer o outro aposento da suíte. Não, não estranhei o aviso. Não mesmo. E não me incomodei com isso. Não sou dado a sinais misteriosos ou aparentemente sinistros. Considero a realidade como ela se apresenta, com praticidade, sensatez – por vezes, até com bom humor.

Abri a caixa envernizada, de madeira verde, envernizada, como disse, de madeira verde, isso mesmo, que era a caixa de sugestões de lazer do hóspede. Deparei surpreso com alguns palitos de fósforo queimados, uns quebrados ao meio, espalhados, dançando fragilmente sobre um jogo de cartas de baralho dispostas em duas colunas. Olhei ao redor e vi, sobre um móvel baixo, um aparelho de TV, modelo antiquado, com um robusto seletor de canais, que parecia não mais existir, não em atividade, especialmente em um hotel. A TV não tinha fios ou cabos, nem havia qualquer tomada por perto. Ao redor dela, sobre a madeira escura do móvel que a acomodava, inúmeros palitos de fósforo riscados, muito semelhantes aos que havia dentro da caixa verde de sugestões. Quem fosse o hóspede anterior, havia tentado ligar a TV acendendo fósforos, foi o que concluí. Com certeza, não pôde ver nada. E eu, agora, podia menos ainda.

Voltando-me à caixa, olhando melhor, constatei que não era bem um jogo de cartas convencional, mas uma série de cartões ilustrados com casais em posições eróticas. As ilustrações eram tão perfeitas que me confundiram: poderia jurar que eram fotos, imagens verdadeiras de pessoas que se submetiam a tais sessões de ousadia, por algum dinheiro. A caixa era alta e funda. Embaixo dos cartões, havia um livro encadernado em uma imitação de couro. Curiosamente, eu levantava os cartões, para alcançar o livro, quando ouvi que alguém mexia ruidosamente na sala ao lado.

Ajoelhada sobre o piso acarpetado, uma faxineira, vestida com o uniforme do hotel, limpava alguma coisa do chão, nessa sala agora sem a maior parte dos móveis. Fiquei atônito com aquilo, pensando em como teria sido possível que se transportassem tantos móveis em tão pouco tempo, sem que eu percebesse, pensando em quem teria feito aquilo e por quê.

“O que você está fazendo?”, disse eu enquanto me aproximava dela por trás, caminhando lentamente ao seu redor e procurando ver seu rosto. A mancha que ela limpava se parecia muito com sangue.

“Você não deveria ter feito isso”, disse ela com voz neutra, sem lamentações nem sinais de irritação. Voltou-me o rosto, olhando-me em seguida – era uma jovem surpreendentemente linda, de um rosto como eu nunca vira antes, destacando-se, cheio de vida, entre a touca que lhe prendia os cabelos e a gola estilizada que lhe fechava o pescoço. Fiquei, por um momento, paralisado. Não conseguia fechar a boca, alguma palavra suspensa, com o choque dessa imagem tão fascinante e intensa. A jovem levantou-se com alguma agilidade, manuseando um pano de limpeza, como se nele também limpasse as próprias mãos, passando-o de uma para outra com um gesto característico.

“Isso o quê?”, perguntei por fim. Teria derramado algo no carpete? Por que aquilo sugeria sangue? Eu não me lembrava de nada. Teriam sido os fósforos? O fato de eu ter profanado a caixa verde com o baralho erótico? Se fosse aquela uma caixa de Pandora, deveria haver (mas não havia) ao menos um lacre ou algum aviso que me proibisse perscrutá-la. Não, não parecia ser nada daquilo, e é comum que os hóspedes, uma vez instalados em seus apartamentos, procurem imediatamente a caixa verde de sugestões.

“Isso o quê? Ter feito o quê?”

“Não poderia… Não deveria… E, de qualquer forma, lembre-se: você está em outro lugar.”

A empregada saiu pela porta da frente, levando o pano entre as mãos. Eu a segui, mas logo à porta deparei com o gerente do hotel, que viera ver-me – um homem simpático, semicalvo, bigode grisalho, sorriso discreto e olhos atentos, num terno muito bem passado, como se ele o houvesse acabado de vestir.

“O senhor pode me informar o que…”

“Você não deveria ter feito isso”, disse ele polidamente, sem nenhum tom de repreensão.

“Se o senhor está se referindo aos fósforos, eu posso…”

“Não há mais como compensar o erro”, ele explicou, movendo levemente a cabeça, um gesto educado mas com algo de conclusivo. “Agora é esperar o tempo passar. E isso acontece o tempo todo.”

“Claro que sim”, disse eu um pouco mais irritado que antes, compactuando com o óbvio. “Mas, no momento, o que estou vivendo é o que importa. Há um jogo de cartas obsceno, um livro encadernado em couro, uma criada assustadoramente bela e fósforos por toda parte. Sei que há algo a ser feito. E há algo que eu não deveria ter feito. Há algo que devo fazer ainda. Também há algo que não farei nunca. Mas não posso ter certeza, não posso afirmar com total convicção que não o farei, se é que o senhor me entende.”

“É sempre assim”, ele concordou. “Principalmente agora, que você está em outro lugar. Lembre-se, portanto: você está em outro lugar. Há algo que você não fará nunca, apesar de não ter certeza, de não poder afirmar com total convicção que não o fará.”

“Mas foi o que eu disse!”, eu por pouco não gritando grosseiramente. “Enfim, seja como for, diga-me: o que devo fazer para mudar tudo?”

“Agora”, ele concluiu com a mesma formalidade, “você terá de descer pelas escadas.”

Leia mais registros de impressões oníricas: Sonho 1081. A carruagem veloz

Imagem: Clyfford Still. Sem título. 1954.

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