Office in a Small City por Edward Hopper

Lisette Maris. Seus olhos estreitos, sem se desviar das cinzas (9/15)

 
Olha as cinzas como fixando um ponto para além do que vê.
Sinto que vou me engasgar não com a saliva, mas com o silêncio.

Albert kotin. A festa IV. 1964.“Essa moça acredita em Deus?”

“Não sei. Ela parece ser muito inteligente.”

“Como? Ainda não perguntou isso a ela? O que tanto vocês conversam então?”

“Ora, mãe. Você nem sabe como Deus é. E daí? Pode até ser um anão amarelo e anêmico.”

Ela agarra-me o braço antes que eu me vire, uma faísca percorre seus olhos e os dentes cerrados.

“Você está grandinho para que eu lhe esfregue a língua com sabão!”

Percebo em seu olhar a cólera inútil dos que não aceitam evoluir, os fantasmas que a acompanham e a assombram, o espírito imortal que sonha ser, personagens do passado, presos na memória, de súbito estilhaçando-se em um turbilhão de lascas, fagulhas e luzes breves, enquanto ela envelhece pelo que acredita.

O viúvo desprende-se do resto do grupo e se aproxima. Minha mãe disfarça sua irritação e solta-me o braço. Ele anuncia que estão todos de acordo em experimentar, finalmente, os pratos. Creem que já se encontram à altura de tais proezas fisicometacinéticas psicoespirituais. Mamãe, claro, não quer ver seu aparelho fragmentado em belos cacos físicos, e vê-se que seu metarraciocínio dispara em alta psicovelocidade para contornar o grupo, o que faz com muita habilidade, tenho que reconhecer.

“Acho que devemos seguir com um pouco mais de cautela. Mal temos controle sobre os pires e os porta-copos. Ainda é cedo, é o que penso.”

O grupo põe-se a discutir sabiamente a questão. Subdivide-se e reorganiza-se entre poltronas, sofás e muretas de nossa sala maior. O viúvo senta-se ao meu lado, bate suavemente a ponta do cigarro no cinzeiro à sua frente. Pergunta, com sua voz rouca e amável, se tenho pensado no que me disse, se ainda me faço um aluno brilhante e se tenho discutido muito com minha mãe. Respondo da melhor maneira, para que não me aborreça mais. Seus olhos estreitos parecem derivar a algum outro tipo de expressão, como se mal ouvisse o que acabo de dizer, o que até então eu não havia notado nele. Pressinto que pretende dizer algo após um silêncio, sob aquele fio de fumaça que o põe à margem dos que tagarelam por toda parte. Bate outra vez, delicadamente, o cigarro. Olha as cinzas como fixando um ponto para além do que vê. Começo a ficar tenso: a saliva entope-me a garganta.

“Você já pensou”, diz por fim, medindo cada palavra e sem se desviar das cinzas, “em como seria libertar-se de tudo?”

Outro silêncio de ruídos alheios nos atravessa como uma nuvem. Engolindo uma, duas vezes a saliva pastosa, eu:

“Como… o senhor disse?”

“A vida nos é imposta de qualquer maneira. Viver está acima de nosso arbítrio. Mas quem nos obriga?”

Sinto que vou engasgar-me não com a saliva, mas com o silêncio.

“Viver… O senhor quer dizer, dependendo de como vivemos”, arrisquei por conta de minha ingenuidade.

“Liberdade para decidir sobre suas próximas vidas”, ele continua, sem ouvir uma palavra do que digo. “Mas nunca se está livre dessa liberdade. Compreende?”

“Claro… que sim.”

Ele, quase sem mover os lábios, com a mesma ênfase de quem busca o silêncio, não as palavras. Sua papada nem treme.

“Não se pode romper o ciclo. Sair. Não ser.”

Apavora-me que um homem de mais de cem anos chegue a tal ponto. Assalta-me uma sinistra impressão de que é sempre tarde demais para todos. Então, como se voltasse a si, com um movimento quase imperceptível de pálpebras, mão recolhendo o cigarro, tenta mudar de assunto, sem se dar conta de que ainda fala sobre a mesma coisa.

“Você acha que um dia faremos o inverno acabar?”

Ao mencionar a palavra mágica, inverno, assunto que todos tentam evitar, sinto-me tentado a confiar-lhe o que normalmente só a Dalma me atreveria, certo de sua atenção.

“Estou apaixonado por uma mulher”, digo-lhe, tremendo. “Quero ficar com ela para sempre, mesmo que tenha de fugir ou morrer. Quero aprender a amá-la acima do inverno, vencer toda a névoa dos dias, por uma primavera que não conheço, que nunca vi.”

Ele esboça um sorriso enternecido que mal combina com sua volumosa figura. Torna a fixar as cinzas. Garante-me que sabe guardar um segredo, especialmente de um amigo sincero.

“Venham, vamos para a outra sala”, chama a anfitriã, surgindo pela direita. Constatando minha palidez: “Que foi? Parece que viu um fantasma.” Ao viúvo, em tom de brincadeira: “O senhor andou pondo medo no menino enquanto eu me distraí, não foi?”

Ao fim da sessão que obriga os cinzeiros e os pires a descrever círculos – por fim formando, à revelia da regência deles, a incompleta figura de uma âncora, o que somente eu percebo –, volto ao meu quarto sempre mais escuro, tendo antes me demorado junto à claraboia do corredor, uma das muitas claraboias de Lisette Maris, por onde se vê minha rua desolada, por entre os ramos retraídos de uma noite fria, atroz e apavorante. Estamos sempre condenados a estas noites, estas viagens.

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

Lisette Maris 10. A viagem improvável do capitão Newman – próximo

Lisette Maris 8. Mapas e diários de não viajar – anterior

Imagem: Albert kotin. A festa IV. 1964.

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