Office in a Small City por Edward Hopper

Lisette Maris. Um sonho afundando em sangue (14/15)

Outra vez parece sorrir entre as presas, como saboreando minha impotência.
Quer apenas assistir à minha confusão e com isso enriquecer seu ódio.

Orange and Black Wall.Volto-me ao caminho. Vou me encontrar com Damares. Aperto a gola do casaco contra a brisa glacial, sigo por minha rua, de árvores esparsas, gramados das casas confundindo-se e repetindo-se até o vértice de sua perspectiva. Que falta de imaginação.

“Bom dia, jovem. Como vão as coisas?”

O vizinho de boina, sua ronda matinal. Aposentado após uma respeitável carreira, até ficar merecidamente retido nessa vida serena em que cinco, dez, quinze anos são equivalentes e se multiplicam e se anulam. Não tenho a menor vontade de cumprimentá-lo.

“Bom dia, caro jovem.”

“Bom dia.”

“Como vai sua mãe?”

“Como sempre, obrigado.”

Aperto a gola do casaco. Pode ser que um dia se encontre o sentido da vida. Enquanto isso não acontece, interessa-me ao menos encontrar um sentido para a minha própria. Capitão Newman, considere suas chances. O velho distancia-se, persuadindo seu cão a acompanhá-lo.

A criada sem olhos abre-me a porta da frente. Surpreende-me que Damares esteja sentada nos primeiros degraus da escada, roupa escura e deselegante, um tipo de macacão inflado, estreito no pescoço, de gola justa e incômoda. Luvas de inverno. Botas que me escondem seus pés.

“Damares”, digo ao aproximar-me. “Que está fazendo aí?”

Procuro seus olhos, agora fixos e sem brilho, como se passassem por mim.

“Damares… O que houve?”

“Vá embora”, ela responde sem ênfase. “Não volte mais. Nunca mais volte. Esqueça tudo, vai ser melhor.”

Pego em seus ombros, com força, agitando seu corpo, como se pudesse fazê-la despertar.

“Obrigada por tudo. Desculpe.”

“Damares… Ei!”

Sem entender o que se passa, alerta-me os sentidos a presença oculta de seu pai, rosnando em alguma parte do andar superior. Mesmo suando de frio e de medo, engolindo minha saliva densa e praticamente sem piscar os olhos, subo à sala das almofadas. Sei que ele está lá. Sigo o som raivoso e contido que manifesta sua fúria, em surda atividade. Empurro a porta meio aberta, deparo com o mastim irredutível, como se estivesse à minha espera, olhos em brasa, sangue manchando-lhe as presas. Mas que sangue era esse, de onde vinha? Perto dele, um prato também manchado: uma porção do que ele parecia estar mascando até então, até levantar os olhos especialmente para constatar minha presença incômoda, mastigando e mascando até então, como eu dizia, o que se assemelha pastosamente aos restos de um cérebro. Enquanto tento compreender esse ultraje, enquanto, num instante, procuro atinar com o que de fato está se passando, ele me abre sem reservas a expressão de toda a sua hostilidade. Simula sorrir por um momento, então salta sobre mim com suas presas prontas a dilacerar o que seja eu ou que seja meu corpo, antes que eu lhe bata com a porta nas fuças e o tranque ali, num fabuloso golpe de sorte em que a chave esquecida do lado errado salva-me por milagre e susto. Corro escada abaixo, obrigo Damares a levantar-se. É uma grande chance.

“Damares! Vamos embora daqui!”

A casa toda vibra com a violência dos latidos, fúria de unhas cavando a porta.

“Damares, não pode ser! Vamos embora! Você me ouve? Me vê?”

“Não volte mais. Obrigada.”

Ouço a porta caindo, com uma pancada. Seu pai aparece no topo dos degraus e se detém, olhos de sangue fixos em mim. Outra vez parece sorrir entre as presas, como saboreando minha impotência. Isso, para ele, é uma felicidade. Move só um passo à frente. Mas avançará a qualquer momento. Quer apenas assistir à minha confusão e, com isso, enriquecer seu ódio.

“Obrigada. Desculpe.”

“Damares… Querida…”

O mastim desloca-se num salto, tropeça nos degraus, cai perto de onde estou, assim emprestando-me o instante necessário à fuga, portas batidas, uma após outra, num último recurso ao meu desespero, por fim o portão de grade à frente do jardim, separando-me daquele que surge triunfante e ainda furioso, abocanhando as barras já sem esmalte, o pai de Damares, junto à gárgula de caninos dourados, para assistir de sua sólida fortaleza à minha retirada sem nenhuma estratégia.

Lisette Maris em seu endereço de inverno  (14/15)

Lisette Maris 15. A oitava noite mais fria de todas – próximo

Lisette Maris 13. Um silêncio de grandes ventos – anterior

Guia de leitura

Imagem: Franz Kline. Parede preta e laranja. 1959.

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