Office in a Small City por Edward Hopper

Estudo com cristais. O prisma e a pirâmide (1/13)

Há algum calor em sua figura distraída, dispersa.
Uma fragilidade que qualquer palavra pronunciada violentará como se trinca um espelho.

Rita Creig. Garota com chapéu de palha.A feira de artesanato me lembra que toda paz tem seu preço. Desde os primeiros ourives e os artistas rudimentares, a colmeia humana tem sofrido toda sorte de flagelos e tumultos que, de certa forma, se assemelham a um bloco espesso de escuridão e sangue, essa antiga muralha de dor, opaca. Ainda assim, nada é tão espesso que não seja invadido pela luz tênue e fresca dos momentos brandos, dos dias claros, ainda que casuais, como este que vivo em meio à feira, entre o rumor pacífico das vozes, o sussurro de folhas, a flauta do vento nas copas. Após todos os conflitos.

Clave de Sol, esse é o nome que ela tem para mim. É o seu nome para mim – e só ela sabe disso, mais ninguém. Ela, pela primeira vez. Senti que assim seria sempre, que eu só a encontraria no centro dos dias claros, como ao fim das chuvas, assim exposta à minha sensibilidade desguarnecida, vulnerável à ação de seus olhos de vidro. Ainda não eram, Clave de Sol, nem os olhos nem os cristais. Sentada, mãos descansando no colo, pés cruzados, alheia a mim, parece fitar um horizonte que a transporte do lugar onde se encontra: a barraca de toldo rubro reinventando seu pequeno espaço, adornando sua delicada imobilidade com minúsculos porta-retratos, camafeus, miniaturas de porcelana, pirâmides de vidro e prismas de acrílico que decompõem o sol. Mais próximo de Clave de Sol, preso à divisória do fundo, o óleo noturno que se contrapõe ao dia: o barco adormecido sobre azuis, águas serenas de vincos que se afastam e luar leitoso, barco e paisagem onde também se sonharia estar um dia, que se desejaria alcançar um dia, após todos os conflitos. A brisa muito leve mostra-me, com fios mais finos sobre a testa e as têmporas de Clave de Sol, que não é forte o bastante para mudar-lhe os cabelos, mover seu chapéu de palha, os brincos, as pulseiras, as franjas do vestido carmim, quando muito alcança refrescar-lhe os pés, em sandálias de couro. Clave de Sol, há algum calor em sua figura distraída, dispersa. Uma fragilidade que qualquer palavra pronunciada violentará, como se trinca um espelho. Essa imobilidade, esse calor, eu os pressinto: um desejo de deixar tudo. Clave de Sol e seu momento, o claro de meu dia, nossa parcela de eternidade e orgasmo, somente possível no intervalo entre os levantes. Após todos os conflitos.

Eco do bronze entre as árvores, carrilhões anunciando não sei que hora de luz e convidando-nos a participar da vida. Como desperta por eles, Clave de Sol percebe minha presença, volta os olhos fulgurantes em minha direção e quebra seu próprio encanto de horizontes. Agora somos, um para o outro. Não mais necessários os sinos ou o barco sob a noite azul, esse que suspeitamos tão nosso. Olhos que se buscam transcendem horizontes reciprocamente. Clave de Sol descruza os pés e recolhe as pernas, num gesto cauteloso, como se a houvessem tocado meus olhos. Mas, Clave de Sol, o que vejo em seu corpo não é o seu corpo. O que atravessa os meus olhos e bate às portas do que ainda desconheço em mim é o que há por lapidar de sua forma aparentemente definida. Quero devassar o que me devassa, nutrir-me do que me devora. O que assalta muralhas e deflagra conflitos fora de meu controle. Desde então, atinei com o destino e o sentido de Clave de Sol em relação ao que construo: sua luz direta, lapidada qual uma fina lâmina, atravessará as seis faces do hexágono, como o foco incide sobre o prisma, desvenda o espectro e destaca os diamantes após todos os conflitos.

Clave de Sol não espera de mim os prodígios de um grande arquiteto. Não o monumento que inspiram os palácios, as pirâmides, antes um exercício com cristais. Tempo e espaço separam seis mulheres, um sólido feito hexágono. Um hexágono quase um diamante.

 Lisette Maris em seu endereço de inverno

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 Imagem: Rita Creig. Garota com chapéu de palha.

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