Office in a Small City por Edward Hopper

Os anjos da lei

O vulto não se move. Não dá para ver bem o rosto, muito menos os olhos.
A chuva fala por todos.

Buffie Johnson. A ponte. 1952Ainda abraçado a Liana, Danilo vê que é uma viatura da polícia. As lanternas intermitentes ferem com dificuldade o ar nublado pela chuva em curso. Parece-lhe inquietante o silêncio em torno de sua chegada: ela apenas estacionou atrás de seu carro, parando devagar, passando aquela impressão quase infantil de que o próprio veículo fosse algum ser vivente, alguma coisa com vontade própria. Mas permanece inerte. Ninguém sai de dentro dele. Nenhum outro sinal por enquanto – a não ser essas luzes piscando com violência, muito rápidas entre uns flashes incômodos, alternando-se como se emitissem uma mensagem em código. Como se quisessem conversar.

“A polícia”, ele diz sem alarde. E fica em dúvida sobre a realidade de sua própria voz, se teria acabado de murmurar isso mesmo ou se apenas o teria pensado, falando dentro de si, porque ele sempre entendeu que só conseguia pensar com palavras, além de dotar as palavras de algum pensamento, daí porque às vezes se confunde. “A polícia”, pensa.

Liana, abrindo os olhos, cabeça ainda apoiada em seu peito, diz:

“Eles chegaram.”

Chegaram? Como assim? Eles quem?

“Vieram buscar você de mim.”

O veículo está ali, quieto, à margem da rodovia, lanternas na mesma frequência de flashes alternados, mas agora, conforme a impressão exagerada de Danilo, com algo de ligeiramente mais ameaçador, ligeiramente mais impaciente, enquanto a chuva castiga a nave invasora como faz com tudo nessa hora.

“O quê? Buscar? Como assim? O que você…?” Ele agora fala de fato, sem dúvida. Pode ouvir perfeitamente a si mesmo, reconhecendo essa ênfase incerta, em meio aos ventos imprevistos da situação.

“Vieram buscar você…”, ela suspira, enfraquecida, num resto de choro.

Ele se percebe em estado de paralisia, e seu cérebro realiza inúmeras operações, durante mínimas partes de um segundo, imaginando que Liana houvesse telefonado a alguma emergência enquanto ele estava no banheiro ou enquanto ela mesma ia ao banheiro, sem que ele o notasse, ou, enfim… Prepara-se fria e firmemente para reagir, com tudo o que consegue reunir de sua inteligência útil e de sua lucidez prática, a começar por não perder a naturalidade, não demonstrar nenhum sinal de hesitação, de insegurança ou medo. Mas polícia sempre dá medo.

Danilo sente o corpo de Liana bem abraçado ao seu, como há vários minutos se faz entregue, buscando, ironicamente, alguma proteção. Enquanto isso, também de maneira paradoxal, fortalecido por essa mulher quase agonizante, ele começa a maquinar em alta velocidade as possíveis frases iniciais de um encontro iminente e inevitável com o inquisidor, sem deixar de tentar compreender, em meio a uma tempestade de ativas faíscas neuronais, o que estaria de fato acontecendo e como teriam as coisas todas convergido a esse momento ridículo, mas não desprezível. Agora, são suas as lanternas invisíveis que se agitam e giram em alta frequência, enviando alertas desde os primeiros arrepios de ansiedade.

Por fim, uma porta se abre. Um vulto robusto desdobra-se de dentro da nave alienígena. Sai caminhando rápido e curvado, quase correndo, na direção deles.

“Ei!”

Danilo arrepia-se. Como? Como chegaram até aqui?

O policial rodoviário, numa capa escura e impermeável, mal se fazendo distinguir seu rosto entre as sombras e todas as obstruções da cor cinza sob o capuz, aproxima-se como um alien determinado e, a alguns passos deles, ergue a mão direita à altura do ombro, como anunciando: “Vim em paz.”.

“Precisam de ajuda?”, ele quase grita, por causa do ruído farfalhante e pesado da chuva.

“Não, muito obrigado”, Danilo, também, quase gritando, mas entendendo que sorri. “Estamos bem. Estamos indo embora agora.”

O encapuzado ergue um braço, apontando os ferimentos de Liana – por sorte, a chuva limpava logo todo o sangue.

“O que aconteceu com ela? Você está bem, moça?”

Liana não responde. Parece drogada.

“Foi só um escorregão”, Danilo estreitando os olhos contra o vento molhado. “Fomos andar aqui por perto e… e a chuva pegou a gente no caminho. Não foi nada.”

O policial se cala, incomodando Danilo com a impressão de que sua historinha não se mostrou convincente – e de que ele não está aceitando bem a versão singela da mentira que esse homem encharcado, abraçado a essa mulher esquisita e toda arranhada, acabou de contar. O rosto do agente continua pouco visível sob o capuz. Seu silêncio é horrível.

“Fomos andar até aquela colina ali, pra conhecer o lugar.” Danilo move o braço na direção do campo. Não há nenhuma colina ali. Não há nenhuma colina à vista. A chuva tinha feito descer pelo ar um manto de invisibilidade sobre a paisagem possível: ravinas, campinas, pequenos vales, árvores nativas, tudo diluído no ar espesso, como no fundo de um mar translúcido, de águas turvas. Não há colina alguma. E mesmo que houvesse, a mentira é a mesma.

O vulto não se move. Não dá para ver bem o rosto, muito menos os olhos, não dá para saber para onde ele está olhando. A chuva fala por todos. Uma inércia cautelosa, talvez. Uma estratégia clássica, mas funcional. De qualquer forma, com algum efeito intimidador. Enfim, que mostre logo qualquer sinal do que por acaso estará pensando, ou do que veio fazer aqui, ou fosse logo se foder em algum outro lugar, porque Danilo agora não está mais para…

“Não é prudente estacionar nessas condições sem pelo menos acionar o pisca-alerta”, explica o homem obscuro mais esclarecido do mundo. “Vocês podem sofrer uma colisão traseira. Pode ser perigoso. Pode ser até fatal.”

“Ah, sim. Tem toda razão. Obrigado, muito obrigado por ter vindo. Vamos, meu bem. Vem, vamos voltar pro carro.”

“Eu não quero que eles levem você de mim”, diz ela baixinho e desastrosamente, com um vestígio de soluço cansado.

“O quê?”, pergunta o alien.

“Não, não é nada. Eles não vão levar ninguém não. O pior que pode acontecer é guincharem o meu carro”, brinca. “Não é mesmo, capitão?”

“Tenente Marcos. Acho melhor vocês irem com a gente até o posto policial mais próximo pra cuidar dessas roupas molhadas.”

“Ah, não precisa não, agradeço muito, muito mesmo. Nada que um bom banho quente não resolva. Vamos, meu bem. Vamos andando, vem.”

Caminham, os três, de volta aos seus veículos, de volta à margem da rodovia, de volta ao que ainda são as suas vidas. Quem visse aquele casal exausto e aquele homem encapuzado, pingando água pelas laterais da cabeça, não poderia afirmar com certeza em que país acontece essa chuva e essa tarde extinta, nem dizer do que trata isso tudo. Talvez não saiba ao certo o que pensar, apenas por lhe faltarem outros conhecimentos, apenas por não saber de tudo. Porque ninguém sabe de tudo. Nunca ninguém sabe de tudo. Nunca alguém alcança decifrar todos os sinais ou enxergar além de um limite sob a chuva densa que sempre volta, enfraquecendo a memória das coisas, por vezes brindando os erros mais sinistros com um manto de completa invisibilidade.

Marcas de gentis predadores

 49. Trogloditas bem-falantes – sequência

47. Dois personagens sob a chuva – anterior

Guia de leitura

Imagem: Buffie Johnson. A ponte. 1952.

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