Office in a Small City por Edward Hopper

Estudo com cristais. A menina dourada (5/13)

Fotografada no álbum de alfazemas, como saída de um cromo.
São sonhos que jamais esquecerei.

Vincent van Gogh. Arles florida na primavera. 1888O relógio avança. Em todos os sentidos. Aos que isto leem, ao que registra. Aos amantes e aos que não o foram. Aos que ousaram ou apenas viveram. Seis entre as mulheres que me possuíram cristalizam-se, numa tentativa de subverter o tempo e fossilizarem-se em minhas cartas. Bem mais que seis e vários de seus múltiplos, as que não possuí e desejei; as que me encantaram, mas não alcancei; as que por acaso entrevi num sonho; as que mal conheci e amei. Bem mais: aquelas que sequer serão lembradas fora de mim. Um vestígio na rocha sedimentar? Não. Nem um fragmento de osso. Uma máscara vulcânica. Uma palavra no âmbar.

A construção que se estende por trás da flora de caniços e ramagens, o vasto telhado em cerâmica, a fachada de um amarelo pálido, meio-irmão do sol que o reaviva, parece a um tempo maior, ao mesmo tempo a mesma. Impressiona-me seu silêncio bucólico, como quando a tomava entre as mãos, envolvendo a lata de doces. Não pensei que pudesse vivê-la, embora sonhasse invadir a fresca paisagem, como um menino passa de uma janela a um verso.

Vem do campo de alfazemas, entre hastes oscilantes, essa menina loira, de cabelos que aproximam o sol, uma criança nua como eu. Temos a mesma altura e infância. Seríamos os mesmos, não fosse eu um menino e ela destinada a encontrar-me. Ao fundo, a construção (uma estância? um engenho?) ao lado da qual se move um homem de cabeça baixa, chapéu de palha, de quem se mostra a metade superior do corpo. Ele não nos vê, mas também recria o sol, os amarelos, reescreve o mundo a seu modo. Clave de Sol, sei que é você. Fotografada no álbum de alfazemas, como saída de um cromo. São sonhos que jamais esquecerei. Há, como na paisagem do passado, borboletas amarelas ao nosso redor, voejando na brisa, como se nunca soubessem para onde ir. Mas quanto a mim… Desde sempre, meu impulso era este, prosseguir. Amar, mesmo sem rumo. Sim, sempre soube da vida e seus cristais. E não houve uma só fase em minha viagem que não me encontrasse apaixonado.

Nossa nudez é apenas natural, como se dá a manhã e sua claridade. Quando me convida a segui-la, a criança dourada, não é senão para mostrar-me mais maravilhas, o que possa ser compartilhado por nosso fascínio, sendo nós dois quase os mesmos.

Afasta-se a construção. Também o que construo em mim mesmo. Antes, apenas inconsciente, hoje esforçando-me para compreender, ainda que muito pouco. E move-nos a conhecê-lo o bosque na sombra próxima, de onde traz o vento um hálito de eucaliptos e dentro do qual, entre réstias de luz e secretamente, trabalham as abelhas. Ao longe, vejo o velho esquálido sob o chapéu de palha, ele que nunca se aproxima das abelhas. Clave de Sol aponta-me as colmeias, as frestas nos troncos, ensina-me a invadi-las com premeditada paciência. Fosse outro o relógio de nossa nudez, fosse outro o quadrante que comporta a solidão dos eucaliptos com suas colmeias, talvez provássemos, Clave de Sol e eu, de um mel especial que ainda não nos serve, que ainda fermenta surdamente na viagem de nosso sangue sob o sol, entre amarelos que nutrem o silêncio e seu claro sorriso. De perto, entrevejo a arquitetura dos favos, cada célula o produto de um estranho trabalho. E você, Clave de Sol, cujo nome é a chave dos amarelos, que atravessa esta narrativa feito a lâmina de luz atinge o diamante por uma faceta e uma fresta, da manhã de sua infância e de sua nudez, revela-me, sem saber, a forma dos alvéolos: o hexágono. Ao hexágono-alvéolo prende-se sua presença, atravessa-o também sua figura multifacetada. O cristal não se detém. Gira, que não tarda a amanhecer novamente.

Lisette Maris em seu endereço de inverno

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Imagem: Vincent van Gogh. Arles florida na primavera. 1888.

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