Office in a Small City por Edward Hopper

Estudo com cristais. Marina (12/13)

Não há linha do horizonte, sim um cinturão de neblina sobre um oceano de cobre.
A tarde lenta e real, desde já perdida.

Ann Sullivan. Mulher olhando o mar (detalhe superior).Sentado sobre a rocha mais ampla, entre outras que formam o semicírculo irregular nesse extremo da praia, diviso, a distância, o vulto em movimento, uma mulher. Esse corpo, conforme se aproxima, ultrapassa sua forma e volume, como dissipando no vento um encanto maior por revelar-se. Sei que é ela. O chapéu de palha faz sombra ao sorriso mais próximo. Vem numa saída de praia branca, tecido imitando toalha, aberta no peito para que se mostre parte do maiô vermelho-vivo. Bolsa larga a tiracolo, sandálias oscilando em uma das mãos. Um precário castelo de falésias protege-nos da praia deserta, isola do mundo esse momento.

“Encontrou o bilhete?” “O bilhete? Como eu poderia estar aqui?” “Lembra do que um dia eu lhe disse? Que haveríamos de nos encontrar ainda. Que as cidades não eram tão distantes. Claro, eu estava brincando.” Marina como sempre foi, desprendida e alegre, nunca ingênua. “O destino deve ter forjado nosso reencontro, Marina. O tempo nos uniu mais uma vez, não está vendo?” Ela, inclinando para trás a cabeça, lançando ao espaço a risada. “Não seja bobo. Você não é mais aquele estudante anêmico que escrevia versos.” Contempla-me, agora, de alto a baixo, detém-se em meus olhos. Eu a abraço de repente. O aroma que sobe de seu pescoço e de seus ombros invade-me os pulmões, as entranhas. “Marina, Marina. São quase vinte anos. Eu sei, eu sei que o tempo se dilui. Mas é tão grande…” Ela me olha de frente, sorri, desprende-se de mim. Senta-se na mesma grande rocha, abre a bolsa em busca de algo. “Pensei em tudo. Podemos ficar aqui até o fim da tarde, ou um pouco antes, enquanto a maré não subir. Você sabe, essas coisas são perigosas.” Imagino, tendo Marina outra vez ao meu lado, que o tempo dos encontros e dos desencontros desemboca no mar de um surdo destino, como as inúmeras e finas vertentes líquidas nos atravessam os rins enquanto dormimos. “E então, me fale da vida. Que fim levou aquela artista? Você: se casou? Se separou? Teve muitas namoradas?” “E muitas solidões.” “Ainda escreve?” “Não sei.” Marina estende-me a fruta que procurava. “Como assim? Por que diz isso?” “As palavras me desafiam sempre mais, afastam-me da vida e de outros prazeres. Um escritor alemão dizia que as vagas, quando se encontram em alto-mar, por um instante formam um cristal. Um cristal momentâneo. Talvez eu esteja em busca de um diamante assim, entre uma vaga e outra, uma estação e outra. Talvez seja este o meu diamante: buscá-lo.”

Inúmeras ondas rasas, lentas e pouco ruidosas, umedecem a areia enquanto conversamos. Outras passam a estourar suavemente nas rochas mais abaixo, lembrando-nos de que o tempo e o mar avançam. Não há linha do horizonte, sim um cinturão de neblina sobre um oceano de cobre, a tarde lenta e real, desde já perdida. “Minha maneira de sentir o tempo talvez seja o que mais me aproxima de alguma transcendência. Por favor, não me confunda com algum espiritualista ou outra espécie de místico esperançoso. Para mim, embora me encante o desconhecido, a vida é espantosamente simples.”

Marina solta os pés sobre minhas coxas. Pés de veias salientes, manchados de areia, que devagar torno limpos massageando os contornos, nervos e ossos. No tornozelo: a fina pulseira de onde pende uma concha branca e castanha. Um fóssil. “Lembro que sempre gostei de acariciar seus pés. Lembra?” Ela faz que sim, sorriso de boca fechada. “Você pegava meus pés como se pegasse minhas mãos.” Volta-me a viagem em que nos conhecemos, ela na poltrona ao lado, folheando uma revista à janela aberta do ônibus, vento nos cabelos, eu a espreitava em silêncio, sem saber até que ponto havia me apaixonado, isso após pequenas cortesias e breves diálogos, entre as muitas horas do itinerário, e foi preciso que, de sua parte, se aventurasse a extrair de mim o que meus olhos já tão ostensivamente lhe diziam. Seu rosto e seus cabelos são os mesmos, vejo-a como em qualquer tempo. “Você não mudou nada”, eu lhe digo, e Marina ri outra vez. “Tive dois casamentos e uma filha. Olhe: tenho estrias, seios mais flácidos. Sinta você mesmo.” Leva minha mão ao seu peito, sob o tecido felpudo, leva-a a passear de um seio a outro. “Quer ver?” De pé à minha frente, despe a saída, desatando um fino cordão que a liberta. Sem desviar dos meus os olhos verdes e um leve sorriso de lábios cerrados, livra-se também do maiô vermelho. Ventre à altura de meu rosto, braços sobre os meus ombros, sim, encantadora. Subo as mãos por suas coxas, sinto as nádegas de mesma maciez e consistência “… de quando éramos namorados.” “E não somos… hoje?” “Marina. Se soubesse com que olhos eu a vejo…” Ela me beija, introduz a língua macia em minha boca. Puxa-me a camiseta, atira-a na areia. Desce a meus pés a última guarnição de minha virilidade, uma peça negra, agora disforme. Ao mesmo tempo em que tudo se passa, repetem-se as pequenas ondas rasteiras que avançam pela praia, retornam no refluxo.

Ao contrário de como a reveste e de como a expõe ao sol o maiô de Marina, o vermelho em geral se manifesta no interior dos seres – pelo menos era o que eu considerava até então, desde que aprendera algo assim na escola.

Flores que o exibem estão abertas, do avesso: é sua intimidade, seu sexo.

Marina oferece a mim sua maturidade, seu corpo de areia, que eu imaginava impossível rever fora do passado, oferece-me

A garganta dos filhotes desplumados, peixes

outra vez a fruta. Sua nudez abre-se a mim sobre a ampla rocha inclinada, eu a assalto e agora a domino. Ela ainda se lembra de como

sob a capa do mar, os corais:

experimentávamos nossos corpos: senta-se em meu colo, de costas para mim, voltada, como eu, à amplidão

tudo de certa forma submerso, resguardado.

aberta aos olhos, um céu e mar sem entraves: e uma nudez de espáduas, cintura e nádegas. Um breve movimento de suas pernas, Marina instala-se junto a meu sexo, chamando-o por trás. Deslizo por essa flor rubra,

O corpo das libélulas, talvez.

Marina envolvendo-me rapidamente em sua úmida caverna, antes buscando-me, conduzindo-me

Por isso voa ligeiro, vem e se vai, esconde-se.

a reentrâncias e abismos mal visualizados por mim, mas pressentidos no movimento, no tato permitido por minha rigidez, minha pele

Os rubis nas minas secretas, o sangue.

elastecida na aventura de seus limites, invadindo

O coração dos vulcões.

seu sexo, Marina: sua flor do avesso, os corais submersos.

Marina repousa, ao lado do meu, o seu rosto. Penso que ficamos assim, juntos, por mais mil tardes de oceano. Mil vezes eu a reencontro, mil vezes ela se despe, mil vezes nos acompanham as ondas que nunca se perdem. Porém, só um é o meu passado. Só uma é Marina. O vento traz os seus cabelos às minhas costas, nossa respiração vai aos poucos se acalmando. Uma calma que antecipa tumultos futuros – a tempestade que traga o pescador, o ciclo dos ciclones. Uma onda chega aos rochedos mais próximos. Outra, mais suave, arrasta-se sobre a areia, alcança-nos os pés. “Precisamos voltar”, ela diz. “A maré já começa a subir.” Beijo Marina, minha última chance, antes que ela volte ao seu mundo. Antes que nos separemos talvez para sempre, perdidos no ir e vir de todos os que vivem, tragados pelo refluxo.

Lisette Maris em seu endereço de inverno

Estudo com cristais 13. O réquiem das crianças – próximo

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Guia de leitura

Imagem: Ann Sullivan. Mulher olhando o mar (detalhe superior).

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