Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Abertura

Dois loucos completos. Com todas as amenidades, todas as gentilezas, próprias de cada um.
Dois loucos, cada um à sua maneira. Um, completamente lúcido; outra, propensa à perfeição.

Fritz Bultman. New York (detalhe inferior) Post. 1939

No último dia de 2004 eu estava fingindo esperanças e uma agenda de motivações que não existiam mais em mim. Tinha perdido todas as minhas aulas e não dispunha de qualquer perspectiva profissional, nada em vista para o ano seguinte. O irmão da Marjorie comprou fogos. Ele e o mais da família estavam todos muito animados, afinal vinham prosperando continuamente, o que para eles sempre significou ganhar mais dinheiro e possuir mais e melhores… – seja o que for, como já se espera. E tudo indicava, pela ordem natural das coisas, que continuariam a prosperar no ano que entrava. Até mesmo o meu sogro, que não faz absolutamente nada, tinha comprado um carro novo.

Mas outras forças estavam em jogo. Algo que nenhum deles percebia, e era claro para mim que não percebiam. Perto dos trinta e cinco anos, o que me afetava com nível considerável de preocupação não era o fato de estar sem trabalho por algum tempo. Eram as minhas respostas secretas. Elas vinham se intensificando. Era isso. E minha percepção intuitiva da situação em curso, forjando reações que eu parecia não reconhecer como minhas, que eu guardava em silêncio, que eu protegia na sombra, que eu escondia entre os dentes, mas que entendia fortes o bastante para não seguirem ignoradas, era agora o foco de minha atenção ativa. Tudo completamente invisível a eles. Sem interesse, no mínimo. Um desmoronamento sem voz. Queda em câmera lenta, quase um alerta laranja. Tímidos sinais suspensos – que só acendiam lâmpadas em mim mesmo.

Já em janeiro, mal me adaptando à nova rotina ociosa e vagando à margem dos chamados dias úteis, passei a observar com mais apuro o mundo ao redor. O mundo ao redor, nesse caso, eram as ruas próximas de casa. E também as menos próximas. Os limites de nosso bairro, o Parque Industrial, por onde eu caminhava e corria, querendo fazer sair de mim, com a rápida expulsão do ar pela boca e com o suor manchando a velha camiseta cinzenta, as toxinas de meus pensamentos mal formulados. Podia sentir meu corpo como há tempos não o experimentava. A exaustão me devolvia vida. O ar que entrava com força em meus pulmões passava a existir de verdade. De verdade, digo, porque ele está aí o tempo todo, esquecido, esperando ser inspirado por alguém, com a violência que faça dele uma entidade também viva.

Até há tão pouco tempo, meu dinamismo minha energia minha dedicação às aulas e a tudo que envolvia esse universo fértil de ideias compartilhadas eram naturais como se eu não pudesse ser de outra maneira. Mas agora eu era. Até quando, não sabia. Por qualquer período de tempo, algo difícil de se adivinhar. Há quase uma década, eu me recuperava de perigosos questionamentos que foram se diluindo por si mesmos e quase declinaram à condição inofensiva de fantasmas brincalhões quando conheci a Marjorie e passei a conviver com ela. Com ela e com sua praticidade sua proatividade sua certeza de conseguir o que queria – como se as questões essenciais que moviam meu pensamento inquieto não tivessem a menor, isso mesmo, a menor importância. E ela me quis.

… a força da virtude de uma pessoa (ou, como definem alguns, de sua capacidade espiritual) poderia ser avaliada por sua vida ordinária cotidiana comum? Sem que faça nada de sublime expansivo influente ou considerado importante?…

É, eu sei, eu deveria estar a caminho, rumo ao consultório do doutor Stabile. Tenho hora, ele está me esperando. Ou não propriamente me esperando: ele tem meu nome agendado, é diferente. Sua secretária talvez me espere mais do que ele. É bem possível, pelo que percebo em certo ar de contentamento dela: rosto moreno, pele tratada, fantasmas de espinhas reminiscentes, dicção perfeita e um desses sorrisos em que os dentes permanecem cerrados, como em anúncios de dentifrícios. Sim, ela parece observar-me especialmente… – ou tudo isso não passa de outra impressão equivocada, outra ilusão desenhada por mim mesmo, o que é muito comum no meu caso. No meu caso… – como posso dizer isso de mim mesmo? Que caso é o meu? Mas o caso… O caso é que estou indo a outro lugar. Talvez o doutor Stabile me cobre a sessão assim mesmo, nunca se sabe. Ele é um profissional, como dizem. Deve cobrar por tudo. Os profissionais cobram por tudo. Não importa. Mas importa um pouco. Sim, importa um pouco sim, é isso. Porque dinheiro não é bem o tipo de coisa que eu mais tenho.

O que eu mais tenho é… Bem, o certo é que eu mesmo não saberia dizer. Porque essas coisas que-eu-mais-tenho às vezes desaparecem. E às vezes elas voltam. Por isso, por causa disso, eu não posso provar nada. Depois elas voltam, como eu disse, com toda força. E aí, então, é quase como se eu pudesse provar aos outros que elas existem, que elas existem de fato, que elas estão vivas em mim. Estou falando das tais coisas que-eu-mais-tenho, se é que não ficou claro. Das coisas vivas em mim. No momento, pelo que entendo, elas desapareceram mesmo.

Depois vou ter que explicar tudo para a Marjorie: por que não fui à sessão e por que não e por que não fui e por que então fui a outro lugar e por que então não, portanto… Não…?! Vejo a Marjorie exclamando, olhos especialmente abertos, fingindo estar mais assustada do que é verdade. Em certas situações, como se em minha testa se apresentassem, em relevo, caracteres rúnicos, ela me encara entre apreensiva e piedosa, tentando ler, em meu rosto, um texto em outra língua. Esperta o quanto pode ser. Sempre que pode ser. E manipula muito bem com os olhos. Não sei como ela faz isso.

… uma sintonia fina, absolutamente sob controle…

E as reticências no ar, o que é muito pior do que se ela dissesse tudo. Sim, é muito pior. Porque então eu acabo me forçando a explicar o que ela nem mesmo teria perguntado, e isso me deixa numa situação bem vulnerável, como se percebe, arriscando-me a revelar algo que, no meu entendimento, no meu claro entendimento, ela não pode, não deve saber. Isso foi em março.

Eu costumava, mesmo antes de me dar conta disso, passear mentalmente entre os pequenos eventos intencionais e aleatórios que preenchiam o dia e a noite de todos nós, para então, em algum momento, capturar num instante uma ideia maior, clara consistente relevante e satisfatória, que flutuava e se solidificava acima de alguns trechos escritos pelos renomados filósofos dos últimos dois séculos. Essa arrogância também era silenciosa. Não incomodava ninguém. Mas partia de conclusões reais que me ocorriam com certa frequência, em parte inevitavelmente, em parte perseguidas como importantes objetivos invisíveis. O que eu temia agora eram as investidas de certos ranços que nem meu antigo humor nem minha antiga determinação poderiam controlar a contento. Agora, essas forças tóxicas e subcutâneas claramente atuavam em mim.

Eu já estava agastado triste sem perspectivas, e minha situação, de alto a baixo, minha situação pessoal profissional emocional setentrional e meridional, suspensa em meio a uma terrível falta de acontecimentos, não apontava para um desfecho feliz. Não apontava sequer para um desfecho, ao menos, qualquer que fosse. Para piorar, eu estava me encontrando com essa menina que me atraía magneticamente imprudentemente naturalmente para sua cama – sim, era a última cápsula de plutônio, o dispositivo que faltava, porque, se alguém soubesse disso, então, sim, minha desgraça toda estaria consolidada historicamente.

… às vezes é preciso que algo desastroso aconteça, porque se perde o medo, e outra força assume o controle de cada gesto nosso, cada decisão…

Porque, em proporção ao meio em que vivemos, eu e todos esses que conheço, às condições culturais que nos proporcionamos e ao quebra-cabeça moral a que nos acostumamos, a descoberta de que eu, desempregado apático desacreditado e esquecido tinha uma jovem amante caracterizaria uma calamidade sem precedentes. Não é nenhum crime. Nenhum ato intencional, maquiavélico. Mas serve para nos fazer esquecer a política e os verdadeiros crimes. E com isso, esse meu delito se agrava cresce fermenta. Por lógica, por uma lógica alheia, para mim incompreensível, eu não poderia ser merecedor de qualquer coisa boa diante de tudo que me pressionava me desafiava me ameaçava, entre o escárnio e o desprezo dos tantos e quantos bem-sucedidos que habitavam confiantes as proximidades de minha vida.

Para vencer algum tempo ocioso e parecer útil a mim mesmo, além de ler cada vez mais livros e textos avulsos, vício incurável no meu caso, passei a cuidar do jardim enquanto a Marjorie estava fora, trabalhando. Coco Chanel fica comigo, cheirando uma florzinha e outra, um galho seco, uma pedra suja, mordiscando um fio de grama. Como ela sempre tem seus próprios interesses felinos, às vezes desaparece enquanto eu a chamo inutilmente – essas pessoinhas, como sabemos, têm o dom de esvanecer-se sob nossa distração avulsa. Outras vezes, descubro que está deitada logo ali, sob algum arbusto, quieta e indiferente, mas observando tudo o que faço. De certa forma, sua companhia faz piorar meus impulsos espontâneos de falar sozinho. Porque eu fico, é claro, conversando com ela. Mesmo assim, é aconselhável que também ela não saiba muito sobre o que penso.

Eu tinha que estar a caminho agora, como disse, rumo ao consultório do doutor Stabile. Tenho hora e… – não tenho certeza de já ter dito isso, mas acho que não. Ele tem meu nome na agenda. A secretária dele é que parece ficar bem quando me vê, é inegável. Um pouco mais animada, talvez. E os olhos dela… Os olhos dela, eu diria… Coitada. Mas eu não vou para lá. Vou para outro lugar. E nisso, enquanto vou seguindo, quase só considerando o chão logo à frente e um pouco ao redor, seguindo e perdendo minha sombra, como nas minhas brincadeiras de menino (mas não como aquele idiota do Peter Pan, de quem a sombra escapava mesmo), nisso, como eu dizia, surge esta imagem: vejo a Marjorie e o doutor Stabile de mãos dadas, vejo-os pelas costas, caminhando juntos e se afastando de mim. Como em um daqueles finais de filmes mudos ou de desenhos animados antigos. Dois loucos completos. Com todas as amenidades todas as gentilezas, próprias de cada um. Dois loucos, cada um à sua maneira. Um, completamente lúcido; outra, propensa à perfeição. Enfim, tudo que o universo não nos ensina nem quer de nós: a lucidez e a perfeição. Falei em desenhos animados, mas é sério, e isso não tem graça nenhuma. Queria mesmo que fosse verdade. Os dois se afastando de mim, gentilmente. Que seguissem a linha do horizonte, a linha do futuro, para qualquer inferno que eles vão cultivando sem saber, com seus exemplos de conduta suas ostentações de astúcia, queria que eles não se voltassem nunca mais, isso mesmo, que nunca mais virassem o rosto para procurar por mim. Nunca mais procurarem por mim. Nenhum deles, nunca mais, procurar por mim. Ah, como seria…

E quem me conhece, e me conhece mesmo, de verdade, sabe que eu nunca quis mal a ninguém, nunca quis fazer mal a ninguém. O que não quer dizer que nunca tenha feito. Mas, nesse caso, garanto que só pode ter sido por obra do não intencional, por acidente. Depois, para todos os efeitos (e para todas as causas, até mesmo em caso de dúvida), um dia devo desaparecer também. Isso deve contentar a todos. Ou, se por algum motivo, isso entristecer alguns, seria mais uma maneira de eu fazer um pequeno mal a alguém, reconheço. Não porque a pessoa vá sofrer a minha falta, claro que não. Mas é porque uma pessoa sensata naturalmente associa ideias, consegue pensar raciocinar concluir e, portanto, lembra (supondo que já tenha pensado nisso antes, por isso usei o verbo lembrar) que um dia irá desaparecer também.

… a morte não é a mesma para todos: a visão da morte muda conforme a cultura e a classe social…

Isso pode causar um mal-estar momentâneo – e talvez mesmo mais duradouro, nunca se sabe. Melhor que antipatizem comigo, isso complica menos as coisas. Porque precisamos sempre mentir, com toda simpatia possível, falando em conquistas e superações e metas e sucesso, dizendo todo o tempo, uns aos outros, que nada vai acabar nunca.

Projeto esvanecendo-se

2. Um stone outra vez a caminho – sequência

Guia de leitura

English version

Imagem: Fritz Bultman. New York Post (detalhe inferior). 1939.

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Comentários

4 respostas para “Projeto esvanecendo-se. Abertura”

  1. Avatar de Gilson Goncalves de Oliveira
    Gilson Goncalves de Oliveira

    Diálogo de um homem desorganizado, um sanguíneo com boa dose de temperamentos melancólicos. Gosto destes contos descontraídos, como histórias contadas ao redor da fogueira. Paz amigo Perce Polegatto.

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Gilson, obrigado pelas palavras, que bom saber que está gostando. Grande abraço.

  2. Avatar de Marian

    Texto maravilhoso, como tantos outros seus! Já li várias vezes e não canso de reler. E, mais uma vez, te agradeço pela dedicatória! xP

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Marian, obrigado pelas palavras, pela gentileza, seja sempre bem-vinda.

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