Office in a Small City por Edward Hopper

Como se nunca eu me conhecesse

O maior herói é o homem comum, no dia qualquer.
A maior aventura, a que não acontece.

Vincent van Gogh. Troncos de árvore com hera, Saint-Rémy. 1889.Embora a primavera se abrisse em sua plenitude, e embora eu não encontrasse um início menos arcaico para esta narrativa, poucos eram os jardins e canteiros de calçada onde umas pequenas flores desabrochavam, sem alarde, sua beleza. É normal nas grandes cidades. Mesmo assim, as mornas sensações da temporada envolviam-me de maneira tão incisiva que talvez nem todos compreendam. Digo isso porque não consigo ficar imune a tais sensações, e costumo superar-me em meu deslumbramento, o que a cada vez me surpreende: é como se nunca eu me conhecesse, apesar de sempre o mesmo. Que mais? Tudo parece contagiante.

Domingo, as ruas do centro. O início da tarde anunciado por certas brisas especiais de outubro. Cada garota que me acontecia observar, fosse ela como fosse, despertava-me estranhos lapsos de atração, entre impulsos quase palpáveis, algo somente compreensível em certos dias de intensa primavera, em meio a novas ciladas. E esse era um dia notável – justamente o auge da estação, justamente a estação dos encantos. Que mais? Oh, a repetição, o tédio: a literatura. Mesmo assim, sempre haverá uma maneira de contar. Oh, a literatura…

O maior herói é o homem comum, no dia qualquer. A maior aventura, a que não acontece. Assim poderia ter começado o texto logo acima, só agora me ocorre. Mas sendo o incorrigível homem cotidiano e vulgar que me conheço sendo, a pretensiosa epígrafe-meio-provérbio estaria não só tratando de mim mesmo como conferindo-me ares de narrador virtuoso ou algo ilustre, tal qual um desses prosadores cuja pena faz crer que não seja ele um de nós, outro como nós todos, dotando-se a si próprio de um talento extra como se sua caligrafia ou sua impressão digital fossem especiais. Virtuoso dificilmente seria um adjetivo aplicável a minha pessoa, salvo quando estendo meus fingimentos a um nível que até mesmo uns colegas de trabalho, de convivência diária e alguns anos de caprichos e azedumes, acabam por se convencer de minha honestidade e de meus princípios. Portanto, sendo desta vez virtuoso pelo fato de confessar-me tão honestamente, ainda assim ponho em dúvida o mérito de tal qualificação, desfazendo-me com certo alívio da responsabilidade de que são vítimas os virtuosos. Agora, quanto a ser ilustre, nem se fale.

Antes de prosseguir, quero lembrar que sofro de enxaqueca crônica. Por causa dela, trato-me com comprimidos que geralmente provocam incômodas diarreias; e por causa das diarreias, tenho de tomar uma solução detestável que me ataca o fígado. (Não tomo nada para o fígado.) Logo pela manhã, notando um sintoma remoto dessas cefaleias infernais, engoli de uma só vez dois comprimidos, para garantir o dia. Mas hesitei diante do frasco contra a diarreia, acreditando nos poderes primaveris e no bem-estar que me proporcionaria um dia assim tão agradável. Ainda no início da tarde, sentia-me livre de meus monstros intestinais, o que me animou bastante. Sim, pois normalmente as primeiras dores da diarreia manifestam-se pouco tempo depois, o que de fato não havia ocorrido até então. Sei que é inconveniente de minha parte cantar a primavera com suas brisas e ao mesmo tempo mencionar diarreias, mas tanto uma quanto outra afetam-me de maneiras diferentes, e esta é a verdade.

Aliás, essa mesma diarreia já me proporcionou momentos extremamente constrangedores. Lembro-me de uma vez em que fui obrigado a entrar correndo na primeira porta que me apareceu: um restaurante fino. Por azar, o garçom não ouvia bem, e eu tive de perguntar-lhe muitas vezes onde diabos ficava o banheiro. A princípio, ele nem me percebeu. Usei reservado, sanitário, W.C. e acabei esgotando meu desesperado vocabulário entre lavabos e toaletes, tudo isso para exprimir uma mesma porcaria – ia logo escrevendo merda, mas controlei-me a tempo. Ao garçom, não só devido à sua deficiência auditiva, mas principalmente porque ele não se dispunha a dar-me atenção desde o começo, meus primeiros apelos em voz tímida, falhando sílabas, foram vãos. Acho que ele fazia de propósito. Não sei. Não tenho certeza. Mas ele não me dirigia um olhar sequer. Apenas inclinava a cabeça de lado, mirando uma parede à frente. Um suplício! É que os bons garçons percebem logo, pela aparência de alguém, se a pessoa é ou não do tipo a que se deva dar atenção. Eu nunca fui, naturalmente.

“Latrina, privada!”, insisti quase gritando.

Disparei até o fim do corredor, segunda porta à esquerda.

“Deus seja louvado…”

Quando saí, todos me viram passar. Um vexame.

A conspiração dos felizes – Guia de leitura

2. Era ela, ela mesma – sequência

Este é o texto de abertura da novela A conspiração dos felizes , a evolução de uma estranha vingança em razão de um trauma aparentemente esquecido. O adolescente é agora um homem doentio, cético e imprevisível quando reencontra o casal de ex-colegas de escola. Compreendendo que eles combinaram o encontro com intenções sexuais, esforça-se para frustrar esses personagens que ressurgem desastradamente em sua vida. Isso cria uma situação constrangedora e insustentável em que todos se perdem em revelações patéticas, permeadas por ironias, conduzindo a desfechos ilusórios, inesperados e a uma espécie de pungente e reveladora confissão.

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Imagem: Vincent van Gogh. Troncos de árvore com hera, Saint-Rémy. 1889.

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